Feministas, vamos parar de difamar a psicologia evolutiva?
De um feminista da área de ciências naturais para feministas com dúvidas ou ideias pré-concebidas sobre a psicologia evolutiva. Publicado antes no meu Facebook.
Feministas, vamos parar de difamar a psicologia evolutiva? Vamos deixar de julgar um programa de pesquisa pelo modo como é retratado na mídia?
Nós bem sabemos que a mídia está mais interessada em Femen e Valerie Solanas do que em pensadoras e movimentos sérios, por que esperaríamos que as notícias do tipo "aponta estudo" seriam retratação justa da área da psicologia evolutiva?
Já notei que muitas pessoas têm, digamos, uma posição de reservas quanto a qualquer coisa que se diga a favor da psicologia evolutiva ou da investigação de bases biológicas que contribuem com recursos alternativos aos recursos culturais para a manifestação dos nossos comportamentos.
Para julgar a psicologia evolutiva de forma justa, no mínimo é preciso ler material original, especialmente de Steven Pinker e Gary Marcus, que são os divulgadores consagrados da área. Não julguem a psicologia evolutiva pela opinião de leigos e blogs (inclusive o meu). Esta é uma atitude nada recomendável, que lembra bastante o modus operandi dos mesmos preconceitos que o feminismo busca combater.
Por muitos anos, com alguma razão, feministas da academia se entrincheiraram na área das humanidades, e lidaram apenas com autores dessas áreas - especialmente antropologia, sociologia, ciência política, estudos feministas, e uma parte da filosofia. Essas áreas, apavoradas com o cientificismo e a miopia social de alguns profissionais das ciências naturais, acabaram gerando uma comunidade minoritária de intelectuais que franzem o cenho à menor referência à investigação científica da natureza humana. Pior, têm náuseas até que alguém ouse usar esse conceito - "natureza humana", como se o ser humano fosse um ser inefável, semi-divino, infinito, incomensurável, sem nada em seu repertório que se repita de uma pessoa para outra ou de uma cultura para outra.
Não foi apenas tentando catalogar algo de diferente, mas também tentando investigar algo de universal, que Margaret Mead partiu para Samoa, fez suas investigações e publicou "Coming of age in Samoa", com argumentos que auxiliaram feministas para apontar que a opressão sexual feminina no ocidente não era algo universal, dado que, argumentou Mead, as meninas eram bem sexualmente resolvidas e passavam pela adolescência tranquilamente em Samoa. Antropólogos que duvidaram dela tentaram fazer o mesmo, achar algo de universal na variação. Talvez seja um erro tentar achar algo de universal na cultura (especialmente com uma amostra tão pequena quanto duas culturas), mas não é um erro tentar achar algo universal no que se convencionou chamar de comportamento, dado fatos incontestes de comportamentos claros e distintos como a capacidade dos bebês de chorar e mamar.
Não vejo por que não podemos dizer que nossa capacidade de chorar e mamar quando somos bebês faz parte da natureza humana, assim como faz parte da natureza humana nossa capacidade de aprender uma cultura, viver nela e transformá-la.
O ser humano é o único grande primata de origem africana que na primeira infância já é capaz de ENSINAR além de aprender.*
Não há mais motivo para se entrincheirar na suposta e simplória dicotomia entre natureza e cultura (nature and nurture), numa época em que estudamos evolução cultural como fazem os antropólogos Boyd e Richerson, sem medo de determinismo biológico, muito menos de determinismo cultural.
Não há motivo para repetir discursos irracionalistas lamentáveis como certos textos da Julia Kristeva em que ela diz que a física dos fluidos não evoluiu tanto quanto a dos sólidos porque fluidos são o arquétipo do feminino e a física é sexista.** Não numa época em que temos a filósofa Susan Haack, que não apenas denuncia o irracionalismo anticiência quanto disseca, expõe e desanca o cientificismo como ele merece.
E por isso tudo, não há razão alguma para simplesmente e preguiçosamente taxar a psicologia evolucionista como sexista, fechando os olhos para suas descobertas, para o debate franco e produtivo dentro dela. Isso também, repito, é preconceito.
A psicologia evolutiva busca estudar comportamentos que têm bases biológicas, especialmente aqueles cujas bases biológicas foram moldadas pela seleção natural. Isso não é novo, a primeira tentativa foi do próprio Darwin em "A expressão das emoções" (1870). Não é à toa que nós sabemos reconhecer sinais de "propensão à agressão" na face de um cão raivoso, e muitos desses são exatamente os mesmos que nós expressamos em momentos de raiva. Cultura nenhuma determinou isso: é uma das marcas indeléveis de nossa ancestralidade animal.
As facetas da natureza humana desvendadas por áreas como genética psiquiátrica, ciências cognitivas e psicologia evolutiva*** podem ser tanto boas quanto ruins. Muitas vezes são forças que agem sobre o mesmíssimo alvo: filhos ou cônjuges, por exemplo. Não há qualquer obrigatoriedade em reconhecer como aceitável ou inevitável algo que é natural: isso seria falácia naturalista. Se, e somente se (e isso ainda não foi estabelecido) o estupro for natural e isso for demonstrado, não significa que também não seja igualmente natural a aversão a ele. Comportamentos devem ser julgados bons ou ruins pelas consequências que trazem ao bem estar de indivíduos, e não por sua naturalidade codificada nos genes ou em programas mentais construídos pela seleção natural.
O feminismo simplesmente não pode ignorar isso. Feminismo trata de pessoas e a igualdade entre elas, nada mais relevante para o feminismo que saber de onde vieram e como são essas pessoas, há quanto tempo estão aqui, e que defeitos de fábrica - ou vantagens de fábrica - elas têm.
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* Dean et al. (2012) Identification of the Social and Cognitive Processes Underlying Human Cumulative Culture. Science 335, 1114-1118.
** Sokal & Bricmont (2006) Imposturas Intelectuais. http://criticanarede.com/imposturas.html
*** A psicologia evolutiva é também comumente chamada de “psicologia evolucionista”.