Três perguntas para descrer em Deus
Como fui convidado a participar na próxima semana da gravação de duas edições do programa Fronteiras da Ciência, na rádio universitária da UFRGS, realizado pelos ilustres do Coletivo Ácido Cético, republico aqui um texto que considero um dos meus melhores sobre o assunto. Foi escrito primeiramente como resposta a um ex-colega de graduação na UnB (as perguntas estão como ele as formulou), e foi publicado anteriormente no Bule Voador.Ei-las, acompanhadas das respectivas respostas.
1. Que procedimentos e métodos corroboram a inexistência de Deus?
Inexistências não são objetos epistêmicos válidos.Em outras palavras, os objetos do conhecimento humano têm de ser positivos, propositivos, e não negativos (têm que acrescentar e não negar). Estou falando, é claro, principalmente de conhecimentos sobre o mundo externo (fora da mente humana).
Antes de tudo, então, o procedimento que aponta para o ateísmo é simplesmente perceber que as proposições positivas em favor de “Deus” (definamos como o Deus dos cristãos) são insuficientes para estabelecer a existência dele como um conhecimento.
Ou seja, a justificação da crença em Deus é inaceitável objetivamente. Desde Platão, conhecimento é definido como crença verdadeira e justificada. A ênfase da epistemologia moderna – ramo da filosofia dedicado a estudar a natureza do conhecimento – é na justificação.
O que tentaram teólogos como Anselmo de Canterbury e Tomás de Aquino foi tentar estabelecer este conhecimento de uma forma apriorística, ou seja, apelando para o mundo interno do intelecto humano. Anselmo dizia que Deus era algo maior do que o qual nada pode ser pensado (perceba o apelo ao “pensar”, à “razão”, ao intelecto, em vez de um apelo a evidências empíricas).
Mas nós raramente podemos confiar no raciocínio apriorístico para fazer afirmações sobre o mundo externo. Quanto mais ousadas são essas afirmações, mais chances têm de estarem erradas.
Aristóteles, por exemplo, tentou fazer várias afirmações sobre o mundo de forma apriorística, e estava errado na maioria delas. Ele acreditava que as mulheres tinham menos dentes que os homens, que a Terra estava no centro do Universo, e que as estrelas e planetas estavam em esferas cristalinas em volta da Terra, e acreditava também que corpos de diferentes massas caem em diferentes velocidades (o que Galileu refutou).
Não estou citando isso para diminuir a figura de Aristóteles, apenas para mostrar que tentar adivinhar as coisas como são no mundo (externo) sentados na nossa poltrona e pensando no que seria mais “lógico” nem sempre funciona, na verdade tem uma margem de erro altíssima.
Essa é uma das razões pelas quais não se pode provar matematicamente que Deus existe, dado que a matemática é essencialmente uma atividade de pesquisa circunscrita ao mundo interno do pensamento abstrato.
Quando alguém afirma que Deus existe, está fazendo uma afirmação sobre o mundo externo. Para saber se algo existe no mundo externo, por exemplo uma forma de animal, é inútil ficar fazendo deduções matemáticas, você tem que ir para o campo e encontrar evidências de que tal criatura existe.
Quando alguém pergunta se existe a entidade X no mundo externo, e você sabe que será difícil ter acesso a qualquer evidência de que esta entidade existe, você deve confiar em entidades correlatas.Investigar entidades correlatas, ou seja, entidades pertencentes a uma certa categoria, para fazer generalizações sobre a categoria é o que chamamos de indução. A indução difere da dedução (que é essencialmente o que se faz na matemática) porque amplia o conteúdo de nossas crenças, e, portanto, de nosso conhecimento. Enquanto isso a dedução pode apenas apresentar conclusões que estavam implícitas nas premissas.
Uma entidade correlata ao Deus cristão são os humanos. Mais especificamente a mente dos humanos. Inclusive a maioria dos cristãos ainda acredita que Deus criou o homem à sua imagem e semelhança. Os mais liberais dizem que essa semelhança é a semelhança de “alma” e não de corpo. Podemos traduzir alma para mente sem grandes perdas.
Jean Piaget diz que a criança, durante a primeira infância, lentamente passa de um estado em que tudo parece ser parte da mente dela, para um estado em que ela se reconhece como um indivíduo. Crianças pequenas podem acreditar facilmente que um ursinho de pelúcia está vivo e tem uma mente. Daí eu concluo que a razão de as religiões concluírem que existe uma entidade divina dotada de estados mentais que controla o mundo decorre justamente desse tipo de desenvolvimento cognitivo.
A conclusão à que chego é que as pessoas acreditam que existe um Deus, ou deuses, porque esta conclusão é fácil de ser feita por causa deste desenvolvimento cognitivo. Ou seja, concluir que existe um deus é um salto indutivo que as pessoas fizeram várias vezes ao longo da história.
Porém a fonte dessa intuição de que existe intencionalidade por trás do mundo vem de dentro e não de fora:
A criança percebe que o urso não se mexe, e isso refuta a sua crença anterior de que o urso tinha estados mentais. Alguns animistas adoram, por exemplo, algum animal como sagrado e atribuem a ele estados mentais. Qualquer pessoa pode observar que este animal tem comportamentos bem limitados e não dá sinais de grandes graus de intencionalidade. (Não mostra ter uma mente sofisticada de um deus.)
Ou seja, tanto no desenvolvimento de uma criança quanto na evolução das religiões (e os antropólogos são unânimes, que eu saiba, em apontar o animismo como o tipo mais antigo de religião), é o contato com evidências em contrário que refuta certas crenças de que mentes se localizam em certas entidades.
A razão do sucesso de deuses invisíveis é que não há como refutá-los com evidências empíricas. Então, na ausência de explicações para fenômenos como transtornos psiquiátricos, ou mesmo a razão da existência humana e de emoções humanas como o amor, as pessoas aceitam a explicação de que foi Deus (ou deuses, ou espíritos) quem foi o responsável por aquilo, apenas porque é intuitivo pensar que existem mentes na natureza que não são a mente humana.
Acontece que nos últimos séculos os erros desse raciocínio de tapar as lacunas do conhecimento com mentes invisíveis começaram a se explicitar. O salto indutivo teísta foi ferido pelo conhecimento e sangrou suas inconsistências, como afirmar que o universo foi criado por uma mente divina apenas porque a única origem de projetos conhecida era a criação da mente humana (como na atividade dos carpinteiros, ourives e artesãos).
O argumento do desígnio (da criação) se mostrou frágil diante de teorias que realmente explicam a origem do ser humano, de suas emoções e sua mente, fazendo acertadas previsões sobre o comportamento dessa mente.
Não sobrou razão para fazer proposições positivas pela existência de Deus para que ela conste no conhecimento humano.
Além disso, esses processos que descobrimos que deram origem à mente humana não se mostram muito diferentes daqueles que produzem os fatos históricos no sentido de que não há um fim definido. Não é inexorável que a mente apareça no universo porque a evolução é um processo cego e sem direção. Talvez seja por isso que o teísmo de tanta gente dependa da inútil persistência em negar a teoria da evolução.
O que aconteceu foi que a justificação usada na indução teísta, baseada em circularidades como acreditar pela fé ou confiar em revelação, autoridade e tradição, se mostrou pueril e minúscula diante de um novo tipo de justificação usado em outra indução, a científica. Não se pode esquecer o papel da dedução nisso tudo, pois foram os lógicos que mostraram que sustentar um argumento sobre a autoridade de alguém, por exemplo, é uma falácia, um erro do mundo interno do pensamento abstrato; além disso, o belo e útil encontro entre indução e dedução da estatística passou a ser usado na justificação científica. Desnecessário dizer que a teoria da evolução passou por todos esses testes e se mostrou uma das teorias científicas mais bem sucedidas da História.
Em suma, o que essa nova justificação mostra é que, apesar de inexistências não serem objetos do conhecimento, probabilidades são.
Toda indução, se analisada apropriadamente, tem associada a ela uma probabilidade, que pode ser expressada em número (existem tentativas no cálculo bayesiano) mas são puramente intuitivas.
Uma pessoa que observou 1 milhão de corvos pretos vai concluir que um corvo que você esconde atrás de você será preto também. A crença dela é dessa forma porque intuitivamente para ela a probabilidade do corvo ser preto é grande.
Existe uma mente que conhecemos no nosso universo, e é a nossa mente. Podemos observar sete bilhões de exemplares dessa mente no nosso planeta. Podemos estudar as propriedades desta mente, e a conclusão é clara: esta mente é um dos resultados dos 4 bilhões de anos de evolução biológica que se passaram na Terra.
Qual é a probabilidade, então, de uma mente aparecer no universo com base nos dados disponíveis? Não podemos ingenuamente contar esses sete bilhões de mentes e dividir pelo número total de organismos vivos na Terra porque, basicamente, essas mentes são cópias umas das outras.
O que temos que fazer é tomar o número total de espécies que existiram na Terra, das extintas até as vivas, e dividir o número das espécies com uma mente pelo número total das espécies.
Este número será algo como 0,0000000000…1. Conclusão: a mente é improbabilíssima.
E uma mente divina, dotada de poderes notáveis como ouvir as orações desses 7 bilhões de pessoas, construir universos, mandar seu filho para redimir essas mentes terrestres (ainda estamos assumindo que estamos falando do Deus cristão), e informar sua existência de modos indetectáveis para os teístas que oram por ajuda?
Qual é a probabilidade dessa mente divina existir? Tem que ser uma assíntota para o infinitamente improvável.
Logo, Deus é improvável. Logo, não tenho motivos para acreditar que tal coisa exista. Logo, sou ateu.
Note que não precisei lamentar os males do mundo em nenhum momento para chegar a esta conclusão. Mas podemos acrescentá-los a gosto na simples receita para o ateísmo.
2. O que diferencia a crença na inexistência de Deus da crença na existência dele?
Tome a argumentação acima e compare com as exortações circulares dos pastores e padres, e você saberá qual é a diferença. Toda vez que se faz uma pregação dentro de uma igreja cristã, séculos de pesquisa científica sobre a inconsistência bíblica são ignorados. Ninguém leva em conta pesquisas aprofundadas como a do historiador Bart D. Ehrman. A Igreja Católica continua achando que há algo de sagrado em reunir seus clérigos em concílios e decidir por voto que evangelhos são a verdade e quais não são (como se a verdade fosse matéria de decisão democrática).
Os religiosos dependem da credulidade para passar sua crença na existência de Deus adiante. Eles precisam recorrer a artifícios como dizer que “é apenas a fé”. (Sem contar artifícios como firmar acordos com o governo para enfiar “ensino” religioso nas escolas públicas.)
Vários dos grandes teólogos sustentam sua teologia sobre a afirmação de que as pessoas nascem com a crença em Deus já implantada nelas. Isso é feito inclusive por teólogos liberais modernos como Paul Tillich. E essa crença no teísmo inato é simplesmente falsa para qualquer um que se proponha a investigar a diversidade de credos que já povoaram as mentes humanas. Nações inteiras vivem sem a noção de deuses, ou de um único deus, e religiões milenares sobrevivem até os dias de hoje sem a noção de Deus (como Budismo, Jainismo, Confucionismo e Daoísmo). Sem contar que na esmagadora maioria das religiões teístas, a noção de deus nada tem em comum com o deus dos hebreus, cristãos e muçulmanos. O único recurso que esses teólogos poderiam ter para continuar afirmando que somos teístas de nascença seria negar a humanidade desses povos. Duvido que fariam isso.Teístas precisam colocar a subjetividade num pedestal como se ela fosse boa em afirmar coisas sobre o mundo externo (lembrando que afirmar a existência de Deus é necessariamente afirmar algo sobre o mundo externo!). Como foi mostrado, a subjetividade não ajuda em quase nada. Se ajudasse, objetos de maior massa de fato cairiam mais rápido que objetos de menor massa.
O filósofo Michael Martin divide o ateísmo em dois tipos: ateísmo negativo (não há razão para acreditar que Deus existe porque os argumentos dos teístas são fracos) e ateísmo positivo (além de os argumentos dos teístas serem fracos, há razões para acreditar que Deus não existe). Ambos podem se amparar na argumentação acima.
3. Em que a Ciência contribui para cada um destes casos?
Como eu já disse, é impossível refutar a existência de entidades divinas invisíveis, até porque elas são propostas já inacessíveis (justamente porque desse jeito fica mais fácil e mais cômodo acreditar nelas). É por isso que a ciência nada pode dizer sobre deuses existirem ou deixarem de existir.
Entretanto, como ficou claro, a ciência fornece premissas para argumentações filosóficas. Um resumo de uma delas foi apresentado acima. Conclui-se disso que o ateísmo é uma posição filosófica.
Mas como diz Sam Harris (em “Carta a uma nação cristã” e “A morte da fé” – recém-lançado pela Companhia das Letras), o termo ateísmo, num mundo ideal, nem deveria existir. Quem acredita em Deus é que deveria se sentir obrigado a justificar sua crença através da apresentação de evidências (e não com argumentaões falaciosas amparadas em idolatrar autoridades, encabrestar-se pela tradição e delirar em revelações). Ser ateu é a posição anterior a isto e deveria ser a posição de qualquer pessoa intelectualmente honesta que reconhece a ausência de evidências para um Deus ou Deuses.
Muitos leitores deste blog já devem ter ouvido respostas religiosas para argumentos similares na linha “bem, não temos evidências, mas não precisamos de evidência para acreditar”.
Neste caso, basta lembrar que nenhum esquizofrênico precisa de evidências para acreditar em delírios que fazem parte do quadro clínico de seu transtorno psiquiátrico. Basta lembrar que tampouco precisam de evidência os muçulmanos para acreditar em Maomé, os hindus para Shiva e Parvati, os cientologistas para Xenu e os Thetans, e os egípcios para o grande Deus Khepri, que era simbolicamente um grande besouro que rola o sol pelo céu assim como um besouro dos mais mundanos rola bolas de esterco.
Não dá para ver a diferença. Parece tudo esterco. Quem será o Midas que transformará algum esterco em ouro e nos dará reais motivos para crer?