Vida após a vida? Espíritos e reencarnação à luz da evolução
Vivemos num país cada vez mais dependente de tecnologia e de conhecimento científico, entretanto, a esmagadora maioria das pessoas, inclusive dentro das universidades, vivem num mundo intelectual povoado de artefatos destoantes do modo de pensar que produzem essa tecnologia e esse saber.
Esses artefatos podem ser agrupados no que se chama popularmente de fé. E fé merece respeito. Se ter fé é optar por incoerência filosófica, se é criar um bunker protegido de todos os lados contra a prospecção da razão, se é aplicar esperanças e forte carga emocional a possibilidades improváveis, ainda assim merece respeito. Pois respeito é, antes de tudo, tolerância. Respeitar é ter a atitude de Voltaire, de lutar pelo direito de expressão do outro com todas as forças, não importa quanto erros o outro cometerá.
Nenhum problema, portanto, que a fé seja tão sedutora para tantas pessoas ao ponto de diminuir a importância da razão em suas vidas. A própria razão, fraca como é, só existe para atender a nossos desejos, como dizia Bertrand Russell. O que há de precioso no conhecimento advindo da razão é sua funcionalidade. Por isso a ciência, como magistério eminentemente racional, consegue produzir tecnologia. Disso não se conclui que a explicação mais racional e mais científica para um dado problema é uma verdade absoluta. Tampouco não ser verdade absoluta dá mais confiabilidade e crédito à fé como método de busca da verdade.
O problema começa quando os partidários da fé resolvem tentar justificá-la com uma caricatura de razão. Quando tentam justificar a “certeza” de uma religião fingindo que ela é uma ciência.
Um homem pode vestir um jaleco, pode segurar um tubo de ensaios, pode desgrenhar os cabelos, mostrar a língua e falar palavras difíceis. Mas isso não faz dele um cientista.
Pode ser um polemista, pode citar nomes estrangeiros, pode emitir aparentes paradoxos, mas isso não faz dele um filósofo apoiado na razão.
Percebo que muitas pessoas em geral bem informadas hoje estão deixando de lado dogmas pouco confiáveis, como os tradicionais cristãos, e optando por novas idéias espiritualistas, doutrinas em franca expansão no meio culto como o Espiritismo, porque supostamente estas estão em plena concordância com a ciência.
Pretendo mostrar aqui que o espiritualismo não só é sofrível à luz de um importante conceito central da Biologia, a evolução, como só pode ser aceito como dogma. O dogmatismo, cedo ou tarde, acaba por fracassar como conhecimento racional. Só pode se amparar em fé, se é que se pode dizer que fé é suficiente para amparar qualquer coisa.
Breve histórico e incongruências associadas
Primeiro, o erro mais comum dos espíritas, por causa das obras de Rivail (Kardec), é associar o termo Evolução à idéia de progresso, de melhoramento.
Este conceito pode fazer sentido na crença religiosa, mas não tem nada a ver com a teoria científica da evolução. Nem com o fato da evolução biológica.
Na época do lançamento da primeira edição do Livro dos Espíritos, em 1857, ainda tinham grande influência sobre os naturalistas da França as idéias de Jean-Baptiste de Lamarck (o principal livro de Lamarck, Philosophie Zoologique, foi publicado em 1809).
Para Lamarck, todas as formas vivas evoluíam marchando para a perfeição, e surgiam por geração espontânea, e o homem era o que mais se aproximava da perfeição neste planeta.
Desnecessário dizer que tudo isso consta no Livro dos Espíritos (e outras obras espíritas como A Gênese): geração espontânea, e evolução como progresso.
Ambas foram abandonadas pela moderna Teoria da Evolução há mais de 100 anos.
Primeiro, porque Francesco Redi e Louis Pasteur mostraram que não acontecia geração espontânea. Claro, quem acreditava fanaticamente na geração espontânea persistiu até o fim, procurando lacunas no conhecimento da Biologia para preencher com a geração espontânea. No mesmo ano da publicação da obra mais famosa de Darwin (Origem das Espécies), em 1859, Pouchet publicou um livro de quase 700 páginas tentando desesperadamente salvar a geração espontânea e o princípio vital – sem sucesso.
O século XIX foi um período de explosão de pensamentos religiosos que a Igreja Católica sempre reprimiu na Europa. Acontecia uma substancial secularização das instituições sociais, que tinha se intensificado nas chamadas revoluções burguesas dos EUA e da França. O Tribunal do Santo Ofício estava fora de moda, então Kardec e outros espiritualistas tinham liberdade para expressarem suas crenças "heréticas".
As obras de Kardec refletem acuradamente o que estava à disposição na época para quem tinha vontade de saber respostas dos cientistas (que não necessariamente são resposta da ciência, ou seja, não necessariamente são amparadas por evidência).
Soa ridículo supor que os "espíritos superiores", que supostamente respondiam as perguntas de Kardec, ficassem atentos às publicações de Lamarck ou de um naturalista evolucionista qualquer cujas idéias não tinham sofrido o choque com Darwin.
O que é mais racional e mais econômico é supor que os médiuns, ou o próprio Kardec, eram leitores curiosos das mais altas especulações científicas de sua época, inclusive hipóteses evolucionistas como a de Lamarck. Ou seja, não só da época, mas do país específico em que Kardec morava.
No ano seguinte à publicação do Livro dos Espíritos veio a publicação conjunta de Charles Darwin e Alfred Russel Wallace, um evento de pouca visibilidade para o público leigo. E finalmente, em 1859, Darwin publicou o seu longo trabalho de décadas no livro "Sobre a origem das espécies pela seleção natural ou a preservação das raças favorecidas na luta pela vida", apelidado carinhosamente de "Origem das Espécies".
Neste livro já se nota o erro das crenças Lamarckistas das quais se apropriou Kardec (ou, para os mais crédulos, das quais se apropriaram os "espíritos superiores"): não há modo natural de definir superioridade e inferioridade na natureza, nem qualquer escala de prioridade ou qualquer conceito ético/estético de que nutrem os humanos para elogiar a si mesmos (neste caso em particular, o conceito de perfeição). O homem está sujeito às intempéries que governam os outros seres vivos (muito mais no século XIX - o próprio Darwin, em vida, perdeu filhos para patógenos egoístas que usam o corpo humano como substrato para sua reprodução. Não era raro famílias ricas perderem crianças assim).
Outra provável influência sobre Kardec (ou os médiuns que o enganaram) foi um evolucionista do século XVIII, o Conde de Buffon (Georges-Louis Leclerc), também francês, que viveu no século XVIII.
O conde de Buffon influenciou notadamente Lamarck. Então, se Lamarck foi a fonte primária do Espiritismo, Leclerc também o foi indiretamente.
Inclusive Leclerc especulou sobre ancestralidade comum entre o homem e os grandes primatas africanos, o que foi retomado depois por Darwin. A ancestralidade comum foi abandonada por Lamarck - em favor da "escala evolutiva", ou "grande corrente dos seres", que colocasse, é claro, o homem no topo.
Outras prováveis influências sobre Kardec foram Herbert Spencer (que advogava idéias deploráveis que vieram a ser conhecidas erroneamente como "Darwinismo Social") e Auguste Comte (que intencionalmente ou não semeou idéias equivocadas sobre método científico que inspiraram dogmatismos religiosos de adoração da ciência em alguns de seus seguidores).
Conclui-se que a última resposta a ser racionalmente invocada para a "codificação" espírita é de que teria sido respondida por gente morta, já que as obras espíritas refletem bem idéias da época acessíveis a pessoas vivas.
A única coisa que sobrou de Lamarck na obra de Darwin foi o uso e desuso e um pouco de herança de caracteres adquiridos. Mas logo esses conceitos também caíram com o advento da Genética no século XX. Ou seja, Darwin fez quase tudo o que era possível fazer pela Teoria da Evolução com o aparelhamento e idéias da época.
Hoje, evolução biológica é definida como apenas mudança, a mudança que ocorre nas formas, nas freqüências dos genes nas populações. Indivíduos não evoluem, apenas populações. Portanto, não faz sentido um espírita achar que uma pessoa é “mais evoluída” que outra.
Não é necessário optar por nada sobrenatural para justificar algo no homem, sejam as emoções, seja o olho, seja o cérebro.
A afirmação comum de que Espiritismo é Ciência não se sustenta. Além de o Espiritismo não estar de acordo com a citada teoria central da Biologia moderna, não está de acordo também com outras áreas do conhecimento científico, como a Astrofísica e a Química – mas isso é assunto para astrofísicos e químicos.
Dogmas espiritualistas à luz da evolução
Munidos agora deste conhecimento, que interpretações podemos fazer de conceitos básicos do Espiritualismo e do Espiritismo?
Por exemplo, como surgiria na história da vida uma entidade paralela, imaterial, que não influi na reprodução de quem a possui, apenas na sobrevivência – que seria uma sobrevivência eterna?
Como já dizia Darwin, o homem traz consigo a marca indelével de sua ancestralidade. Ou seja, ainda temos características de bactéria, de protozoário, de peixe, de réptil, de mamífero primitivo, de primata ancestral. Estas características estão entre coisas que até comumente supomos que são exclusivas nossas – como cultura, mente, memória, sentimentos, etc. Ou seja, de exclusivas, em última análise, essas características não têm qualitativamente nada.
Traríamos conosco, no espírito, características de nossos ancestrais também? Até hoje não vi nenhum espiritualista supor coisa parecida, como se o espírito já nascesse do jeito que é (com ou sem atuação de criação divina), já dotado de mente por exemplo. Mas não precisamos de interferência divina para explicar como uma bactéria originou um homem. Aliás, cada vez mais não precisamos de explicações sobrenaturais para traçar conjeturas prováveis de como a matéria inerte originou a primeira célula bacteriana.*
Aí começa mais um problema para os espiritualismos.
As características presentes nos animais, incluindo o homem, surgiram por dois processos:
1 - Seleção natural, quando conferem ao organismo em que estão mais sucesso reprodutivo (adaptação).
2 - Acaso, quando se fixaram na população por acompanharem os sobreviventes, não necessariamente sendo responsáveis por maior eficiência em sua reprodução (deriva genética).
Por exemplo, o olho. Quem tem olho tem mais chances de encontrar alimento, e é mais eficiente em escapar de predadores. Portanto, tem mais descendentes.
Hoje, o estágio inicial do surgimento do olho pode ser traçado a uma proteína sensível à luz (portanto, algo muito simples - proteínas e seus blocos construtores são produzidos livremente no universo sem a presença de vida). Existem outras proteínas parecidas com esta, que não são sensíveis à luz. Portanto, basta mutação numa proteína ancestral para que a proteína se torne sensível à luz (grosso modo).
O início do olho, nesta proteína, já tinha a característica 1. E o início do espírito?
O início do espírito precisaria ser ao menos mortal. Esse proto-espírito precisaria se replicar, passar herança para descendentes - e os que sobrevivessem por mais tempo precisariam ser selecionados. Mas segundo o Espiritismo, espíritos não se reproduzem, apenas reencarnam e marcham para o progresso.
Além disso, uma grande inconsistência do espírito como entidade natural (ou sobrenatural, mas dá na mesma dado que ele interage com a matéria viva) é a questão da energia.
A evolução biológica vem acontecendo na Terra há 4 bilhões de anos.
Os seres vivos lutam com todos os genes para estocar energia (ou usá-la para ter maior sucesso na reprodução), pois não é coisa de fácil acesso, e boa parte da evolução só aconteceu porque eles tiveram que lutar por energia. As florestas só têm árvores altas por causa disso.
Espíritos são improváveis de aparecerem no curso da evolução porque:
1 - Seres vivos precisam ser econômicos no gasto de energia, e a manufatura de um espírito pós-mortem num estágio inicial é um gasto desnecessário que seria eliminado, enquanto o gasto de energia na produção de uma prole não é desnecessário, na verdade é o que fundamenta a própria existência desses seres.
2 - Entidades capazes de sofrer evolução precisam ser replicáveis, e essa replicação precisa ser imperfeita em algum grau, e as variações que são fruto dessa replicação precisam ser selecionadas pelas condições do meio-ambiente. As características que levaram as variações sobreviventes a sobreviverem precisam ter, ao menos em sua base, alguma garantia de hereditariedade pela replicação.
O tipo de espírito proposto no Espiritismo, capaz de reencarnação, teria grande limitação para esses pré-requisitos, então teríamos o ridículo de ele ser gravemente retardado no curso da evolução e oferecer um tempo de "sobrevida" curto, além de inútil.
Imaginem um homem que morra, depois de ter vivido 90 anos justamente por causa da seleção natural atuando em seus ancestrais, se encontre fora do corpo num espírito de bactéria, que vive apenas um segundo porque após aparecer nas primeiras formas vivas, há bilhões de anos, o espírito apenas reencarnou e reencarnou, como água que se infiltra em diferentes substratos mas não deixa de ser água.
A energia tende sempre a se transformar para estados inacessíveis à realização de trabalho, ou seja, aumenta a entropia (“desordem”). Essa é uma das razões por que nossos corpos, após décadas de vida, se encontram exaustos, cessam seu equilíbrio dinâmico e cedem à decomposição.
O que garante que a forma de energia do espírito, diferente de toda e qualquer outra forma de energia conhecida, seja imune ao aumento da entropia? Uma mente não pode ter como base algo tão estático e sem o equilíbrio dinâmico de um corpo – pensar consome alimento,consome ligações entre carbonos. A mente, por definição uma entidade organizada, mantém sua organização às custas da desorganização que causa no ambiente ao seu redor.
Em outras palavras, espíritos precisariam se alimentar.
Para responder a esses argumentos, os espiritualistas precisariam explicar a origem do espírito a partir de evolução, e a termodinâmica do espírito como a manutenção de uma entidade em equilíbrio dinâmico, que é capaz de se manter invulnerável ao aumento de entropia interna através de aumento de entropia global. Em outras palavras, o único tipo de espírito plausível fisicamente, é um que coincida com o “simulacro” (conceito de Epicuro) que é nosso próprio corpo, em que há entrada e saída de energia, assim como um rio é uma forma constante a ser apreendida de movimentos incessantes. Um rio não é sempre o mesmo.
O único espírito plausível é o corpo. E este, morre. Não “reencarna”, transmite herança em várias cópias diferentes – os descendentes. Não marcha para a perfeição, apenas muda de modo a preservar sua sobrevivência.
A manutenção de um espírito é totalmente contrária a essas regras. Representa um centrismo no indivíduo que é surreal para os mecanismos da evolução.
Em algum momento teria de haver "competição" entre o gasto de energia na produção do espírito e gasto de energia na produção de descendentes. A segunda opção ganha por definição.
O legado de nossa miséria, e o legado de nosso triunfo, só podem ser transmitidos aos nossos filhos, e não a uma forma surreal de nós mesmos que precisa sobreviver à morte do corpo só porque assim a morte parece menos assustadora.
Vida após a morte, e espíritos, e reencarnação, são coisas inverossímeis, improváveis. Não serão desejos e motivações emocionais que mudarão isso. Apenas evidência, e não há muitas perspectivas de que as evidências hoje apontem para outras conclusões.
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NOTA
*Processo de biopoiese, muito diferente de geração espontânea, pois se deu em condições hoje provavelmente ausentes na Terra – ou seja, mecanismos puramente naturais e físicos, num evento extremamente improvável no universo, mas cada vez mais provável conforme consideramos cada condição ambiental que se somou à sua ocorrência. Ou seja, um evento que, por ser natural, só precisa das condições naturais adequadas, como moléculas orgânicas que existem livremente no universo, e a quantidade de energia livre originada na fusão estelar ou fissão radioativa (acrescentei fissão por que há a possibilidade de a vida ter surgido em meio ao calor das fumarolas submarinas, este calor provém da fissão de elementos radioativos). Recomendo sobre esse assunto os livros: “O que é vida?”, de Schrödinger, e “O que é vida? – 50 anos depois”.