Sou "pró-escolha", mas acho incoerentes os "pró-vida" que abrem exceção para o estupro
Um complemento aos meus argumentos já publicados sobre a questão do aborto
Minha posição a favor da descriminalização do aborto em fase precoce da gestação está disponível na internet, em diferentes textos e diferentes estágios de desenvolvimento (trocadilho acidental), há mais de dez anos. Neste tempo, pensando que eu era mulher, a Sara Winter uma vez leu um desses textos, quando ainda era feminista, no programa de TV da Luciana Gimenez (certamente uma das coisas mais engraçadas que já me aconteceram — com certeza ela não teria lido se soubesse que sou homem… bem… quase homem). Desses textos, considero este, escrito para ser uma introdução para indecisos, e este, em que defendo minha posição, os melhores que já produzi.
Agora que o Texas moveu legislação para banir aborto após a sexta semana de gestação (se dobrassem o prazo eu até concordaria), vi uma oportunidade para tratar de uma nuance não na minha posição pró-escolha, mas nas posições pró-vida. Eu uso esses termos “pró-…” não porque concordo com eles ao pé da letra, mas porque são curtos, convencionais e facilitam a discussão.
Algumas pessoas contrárias à descriminalização do aborto em qualquer fase de desenvolvimento do nascituro pensam que o aborto é permissível caso este nascituro seja um produto do estupro. Esta posição é considerada por muitos uma versão moderada da posição pró-vida, inclusive por muitos pró-escolha. Mas eu discordo: essa posição é muito mais logicamente problemática e, segundo os próprios critérios, mais cruel do que a posição de banimento de toda forma de aborto independente do motivo. Explico.
Há uma opinião majoritária, com a qual concordo, que o caso geral é que matar uma pessoa é um crime e uma imoralidade pior que forçá-la ao sexo. A legislação reflete esse consenso: sem agravantes, a pena máxima para estupro no Brasil é de 10 anos de reclusão, para homicídio é o dobro. Em outras palavras, grosso modo, estupro é ruim, homicídio é pior.
Ora, se você acredita que o nascituro é literalmente uma pessoa, ou, alternativamente, que tem direito de pessoa desde a concepção (fecundação e formação do zigoto), não faz sentido permitir o pior por causa do ruim. Uma coisa moralmente pior que outra não pode servir de remédio para a última.
É um clichê das posições mais rudimentares e mal argumentadas pró-vida acusar toda e qualquer posição pró-escolha de crueldade, apoio ao infanticídio ou coisa pior. Ora, você pode pensar que a minha posição é isso tudo, mas eu não penso que, antes de certo limiar seguro de tempo, o nascituro tem direito de pessoa, pois não penso que seja uma pessoa, embora seja um organismo genomicamente humano. Porém, se você adota a versão “moderada” pró-vida descrita acima, permitindo aborto em caso de estupro, quem está permitindo matar pessoa segundo seus próprios critérios é você.
O mesmo vale para a versão “moderada” da posição pró-vida que abre exceção para o aborto de anencéfalos. Ora, se os anencéfalos são literalmente pessoas, ou têm direito de pessoa desde a concepção, não faz sentido agir como se não tivessem direito de pessoa depois da concepção por causa da tragédia no curso de desenvolvimento do sistema nervoso central. E mais: a minha posição tende a ser que o anencéfalo não deve ser abortado caso tenha ultrapassado o limiar de desenvolvimento que eu aceito (12 semanas) para o desenvolvimento de propriedades que fazem de um organismo genomicamente humano uma pessoa completa, ou ao menos suficientemente próximo de uma pessoa completa.
Permitir que seja terminada a vida que você mesmo considera digna de direito de pessoa é flagrantemente uma posição muito mais cruel do que a minha, já que em momento algum penso que minha posição leva à interrupção da vida de pessoas, ou seja, a assassinato. Você pode pensar que eu defendo assassinato, mas eu não penso que defendo. Porém, se você for um “pró-vida moderado” do tipo que descrevi acima, você é quem defende assassinato, segundo os seus próprios critérios.
No fim das contas, eu penso que a minha posição é a menos cruel possível. Claro, do contrário não a defenderia. Interromper o desenvolvimento de nascituros é uma coisa séria. Não deve ser considerada no mesmo patamar moral de usar pílula ou camisinha. Há muitos argumentos rudimentares pró-escolha que atrapalham a posição até mais que sermões de muitos pró-vida: por exemplo, “meu corpo, minhas regras”, “sem útero, sem opinião”, “é questão de saúde pública” e “se homem engravidasse, já seria legal”, todos os quais, se é que chegam a ser argumentos, são argumentos péssimos e slogans irritantes. O aborto, como decisão individual, deve ser evitado ao máximo possível. Porém, se for para acontecer, é moralmente permissível quando o nascituro é um ser genomicamente humano, porém ainda longe de ter propriedades de pessoa.
Há complicações em que os envolvidos precisam decidir entre a vida da gestante e a vida de um nascituro que já passou do limiar discutido e, portanto, eu concordaria que é digno de desfrutar de direitos de pessoa. Não invejo quem é forçado a fazer esse tipo de decisão. Porém, no caso geral, a posição pró-escolha precoce que eu defendo é menos cruel que a “pró-vida moderada”.
Sou "pró-escolha" também, mas não vejo problema no "pró-vida" que é a favor do aborto em caso de estupro. Desde que sua base seja o consenso, de que se duas pessoas fazem sexo consensual as duas estão concordando com a chance de ter um filho, e por isso o aborto nesse caso seria inválido, já no sexo não consensual, uma das duas pessoas não concorda com a chance de ter um filho, então o aborto seria válido. Não vejo grande erro lógico nisso.
Não entendo a contradição entre o pró-vida a favor do aborto de anencéfalo. Me parece como algo com fortes paralelos no desligamento de aparelhos do indivíduo com morte cerebral. Óbvio, em ambos os casos, o pró-vida seria favorável devido à inexistência de qualquer potencial de recuperação do feto/cerebralmente morto, em ambos os casos não desfrutando mais sequer da chance de voltar a ter seu sistema nervoso, tido por alguns como central para adquirir os direitos de pessoa.
A diferença é que essa variante do pró-vida considera a possibilidade/viabilidade futura de recuperação/desenvolvimento cerebral, um foco tão somente no desenvolvimento nervoso do momento levaria à uma posição pró-escolha.