Sonhos premonitórios
Encontrei pela internet o relato de uma mulher que alegava ter previsto em seus sonhos várias coisas, entre elas a morte de uma pessoa num acidente de moto e os números da Mega Sena (maior jogo de sorteio brasileiro, com prêmios na casa dos milhões). Ela perguntava, sobre os sonhos, “o que eles querem dizer? Será que há alguma explicação para isso? Onde posso obter ajuda? Será que estou ficando maluca?” Ela recebeu logo várias respostas, previsivelmente dizendo que ela tinha “alguma mediunidade”, uma “missão de Deus”, etc. Falaram até em “mundos paralelos”, “física quântica”, e todas essas respostas fáceis do imaginário popular do século XXI. Eis a minha modesta, porém firme resposta.
___ Muito bem, antes de dar a minha opinião minoritária, gostaria de deixar claro que não tenho a intenção de ofender ninguém. Mas a minha opinião é: nenhuma das explicações dadas aqui passa perto do que deve ser a verdadeira explicação para o que acontece com a senhora que iniciou o tópico.
E vou dizer o porquê. Se houvesse algum verdadeiro poder premonitório em alguma pessoa, por que então não temos até hoje nenhuma evidência de que alguém tenha de fato evitado um acontecimento ruim, comunicando com antecedência a sua premonição? Claro que relatos há, de que o primo do amigo do tio do vizinho fez isso e aquilo, mas podemos considerar algo tão frágil uma boa evidência? Não.
Não podemos porque relatos têm a fragilidade da subjetividade das poucas pessoas que os proferem. Se eu afirmo que existiu um presidente brasileiro chamado Getúlio Vargas, essa afirmação conta com diversas evidências histórias: documentos, vídeos, fotos, e também relatos, mas dessa vez eu levo relatos em conta porque existe uma convergência universal de todos os relatos: pouca gente ou ninguém diria que não existiu um Getúlio Vargas (em todo caso, relatos continuam sendo preferencialmente fontes secundárias).
Portanto, quando essa ilustre senhora disse que previu coisas como os números da Mega Sena, só podemos contar com seu relato, e talvez com o relato da pessoa que ganhou o prêmio. São relatos isolados e não uma convergência de relatos diversos. E o fato já aconteceu, o que torna a evidência mais fraca ainda.
Não podemos afirmar que premonição onírica (através de sonhos) é real com base apenas nesse relato, pois evidência anedótica não é evidência confiável.
Existe, de fato, a crença universal, em praticamente todas as culturas humanas, de que o sonho pode ter função premonitória. Por que? Será que realmente meras pessoas dormindo conseguem violar todas as leis da física conhecidas e fazer uma visitinha ao futuro?
Temos relato universal de que há sonhos premonitórios, mas isso não prova que existe premonição verdadeira. Quanto às explicações religiosas, de que é um "dom" ou uma "mediunidade", bem, somente o fato de os religiosos não conseguirem concordar entre si para explicar o que é isso já me basta para não considerar uma explicação melhor que a outra.
Primeiro, porque não há evidência nenhuma de que existe um Deus, muito menos de que caso exista ele dê dons de forma tão desigual para as pessoas, de modo a presentear algumas com premonição e outras com mal de Parkinson.
Segundo, porque não temos também evidência alguma de algo que se passe na mente humana e possa ser chamado de "mediunidade", no sentido de contato da mente com entidades ou fenômenos sobrenaturais. Até porque, até hoje ninguém provou que há mesmo um mundo sobrenatural, ou espíritos.
O que diriam as religiões egípcias a respeito disso? Qual dos deuses egípcios - Rá, Khepri, Ísis seria responsável por isso? E o politeísmo greco-romano, como explica?
Não me deram também nenhum motivo para descartar as explicações das religiões que ninguém mais pratica para adotar as explicações das religiões atuais. Khepri e Vênus têm tantas chances de serem reais quanto os espíritos superiores de Kardec e o Espírito Santo dos católicos.
Todas discordam entre si, e as que concordam não têm muitos motivos além da pura fé para concordarem.
Enfim, se queremos ser imparciais, não podemos adotar uma explicação religiosa particular em detrimento de todas as outras.
Falemos agora de ciência. Como eu disse, presumir que uma pessoa é capaz de transportar sua mente para o futuro não é algo que está de acordo com o que sabemos sobre leis físicas que regem o mundo natural. Até porque o futuro é um mar de possibilidades indeterminadas, não um enredo de novela da Globo (que é sempre muito previsível).
Temos livre-arbítrio, não temos? Eu posso escolher ir ou não ir à aula amanhã, se alguém é capaz de prever o que eu vou fazer, é porque meu futuro é determinado, então eu não tenho escolha nem livre-arbítrio.
Então, várias pessoas, ao acreditar em premonição, negam o livre-arbítrio inadvertidamente!
Bem, mas o assunto é ciência. Para sabermos se nossa companheira aqui é capaz de prever o futuro com seus sonhos, precisaríamos então testá-la. E eu acho que é isso que ela deveria se prontificar a fazer, se fosse de seu interesse que acreditássemos nela.
Da próxima vez que ela tivesse um sonho premonitório, precisaria ter um método confiável de registrar que o sonho veio antes do evento que ele previu. Esperaríamos que o evento acontecesse, com observadores imparciais, e compararíamos com a previsão.
Isso seria muito fácil de fazer com os números da Mega Sena. Basta anunciar que sabe os números antes do sorteio, lacrar em público um documento contendo os números (claro, não precisa revelar quais são), e depois do sorteio confirmaríamos se acertou.
Isso foi uma reflexão sobre como se pode usar o método científico para investigar a questão.
Agora, vou falar do que já sabemos sobre os sonhos.
Sabemos que a maioria das culturas, se não todas, acreditam em premonição onírica.
Sigmund Freud especulou, em seu livro "A interpretação dos sonhos", que haveria um remanescente das memórias do dia no enredo dos sonhos da noite que se segue.
Freud estava certo. A moderna fisiologia confirmou que os sonhos são importantes para as memórias, pois as pessoas que não dormem uma noite se lembram menos do que aconteceu no dia anterior.
No mês passado (precisamente 10 de outubro de 2008) eu estive numa palestra, na Universidade de Brasília, do neurocientista Sidarta Ribeiro, professor da UFRN e pesquisador do Instituto Internacional de Neurociências de Natal. Nesse instituto colabora o Dr. Miguel Nicolelis, que poderá ser o primeiro brasileiro a receber um prêmio Nobel.
Foi muito esclarecedora a palestra do Doutor Sidarta. Ele nos mostrou como a sua pesquisa mostra que na fase do sono em que acontecem os sonhos (em que costumam acontecer os sonhos na esmagadora maioria das pessoas), que é a famosa fase REM, acontece a consolidação das memórias.
Consolidação, porque as memórias que adquirimos durante o dia são lábeis, frágeis, ficam na forma de uma reverberação nos neurônios.
Então, o que as pesquisas de Sidarta Ribeiro e sua equipe em Natal estão concluindo, e nós devemos ficar muito orgulhosos por isso estar acontecendo também no Brasil, é que uma das grandes razões pelas quais nós precisamos dormir é porque o sono consolida nossas memórias.
E os sonhos nisso? Na palestra, o que ficou claro para mim é que é tudo muito incipiente ainda, entretanto, são boas intuições incipientes que levam a boas descobertas científicas, e a do Dr . Sidarta é de que os sonhos são a "simulação de um futuro possível com base em experiências do passado".
Por essa razão, crianças que moram em países em guerra sonham com guerra! Povos que vivem na savana africana sonham com feras da selva!
Não é que os sonhos são capazes de violar tudo o que sabemos e visitar o futuro (se é que o futuro é algo determinado capaz de receber visitação), o que é provável é que as memórias consolidadas no sono das pessoas servem como base para uma simulação interna, como em video game, de um futuro possível que essa pessoa pode passar.
Por isso, se você vê um ente querido andando de moto, assiste na TV acidentes de moto, e fica pensando muito nisso, tudo isso vira memória consolidada e serve como "planilha de dados" para o sonho, que não é um 'vidente', e sim 'analista financeiro', e provavelmente simulará um futuro possível em que seu ente querido se acidenta.
E, infelizmente, é algo que pode mesmo acontecer. Os futuros possíveis podem coincidir com futuros reais, e isso é a base do conhecimento milenar de que os sonhos são premonitórios.
É esta a interpretação do neurocientista que citei, e estou de pleno acordo com ele. É uma explicação econômica, simples, realista, pragmática e funcional. Pode estar errada? Claro. Mas tem seu mérito e poderá também ser confirmada: sonhemos com isso.
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P.S.: A autora das perguntas no começo dessa postagem parece preferir continuar acreditando em algo sobrenatural nos sonhos, embora não tenha me respondido. Outras pessoas no fórum me responderam com – adivinhem - evidências anedóticas. Alegaram que 50% dos participantes daquele fórum, se eu perguntasse, confirmariam que o sonho tem poder de premonição. E assim caminha a humanidade.