Resposta ao editorial pró-identitarismo da Science — por Susan Haack
Escolhi trechos de "Defendendo a Ciência" e "Húbris", livros da filósofa que traduzi, como resposta ao editor-chefe da Science
A filósofa britânica Susan Haack, que leciona na Universidade de Miami, é a maior e melhor representante viva da tradição filosófica do pragmatismo de C. S. Peirce (1839-1914). Um competidor até 2007 era o americano Richard Rorty (1931-2007), um adepto do que podemos chamar de pós-modernismo, uma corrente profundamente cética contra a empreitada cognitiva da filosofia e, por extensão, da ciência. Certa vez, Haack demonstrou que Rorty era um falso representante da tradição de Peirce montando uma conversa imaginária entre os dois, mas com trechos reais de suas obras.
Vou fazer o mesmo aqui para responder a um editorial pró-identitarismo da revista Science, de título “É importante quem faz ciência” (11 de maio de 2023). O autor é o químico Herbert Holden Thorp, editor-chefe da revista científica prestigiosa. Os trechos com respostas da Susan são da minha tradução de seu livro “Defendendo a Ciência — Dentro do Razoável” (Stentor Books, 2023) e do pequeno livro gratuito “Húbris”. Se você quiser ler o editorial da Science na íntegra separadamente, cada fala de Thorp abaixo é um parágrafo completo.
Thorp: A pesquisa científica é um processo social que ocorre ao longo do tempo com muitas mentes contribuindo. Mas o público foi ensinado que o insight científico ocorre quando velhos brancos barbados são atingidos na cabeça por uma maçã ou saem correndo de banheiras gritando “Eureka!” Não é assim que funciona, e nunca foi. Em vez disso, os cientistas trabalham em equipes, e essas equipes compartilham descobertas com outros cientistas que muitas vezes discordam, e então fazem mais refinamentos. Depois, essas descobertas são colocadas na literatura científica para que ainda mais cientistas examinem e produzam mais ajustes. Por fim, teorias se tornam conhecimento. Ao longo do caminho, esses cientistas são visível e magnificamente humanos — com todas as virtudes e vícios que os humanos possuem. E isso significa que quem esses indivíduos são, e os antecedentes que trazem para o seu trabalho, têm uma influência profunda na qualidade do resultado final.
Haack: Alguns maldizem a ciência porque a veem como peculiarmente ocidental, branca e masculina. É verdade que a ciência moderna emergiu no Oeste da Europa e tem sido na maior parte de sua história uma obra principalmente de homens brancos. Não se segue disso, e não é verdade, que ela é inerentemente uma empreitada branca e masculina. Houve muitas antecipações da ciência moderna nas civilizações da China antiga, do Vale do Indo e Babilônia, além da Grécia antiga. Se essas antecipações não atingiram a massa crítica, mesmo assim deixaram contribuições de valor duradouro; registros chineses antigos de eventos astronômicos, por exemplo, mostraram-se nos últimos 30 anos indispensáveis na interpretação de estrelas explosivas chamadas supernovas. (…)
Alguns, compreendendo mal a ciência como uma expressão de “práticas epistêmicas” especificamente europeias, criticam a sua introdução às culturas não ocidentais por ser colonialismo desrespeitoso e condenável. Mas a introdução de ideias científicas modernas a uma cultura pré-científica não está no mesmo nível de, digamos, tentar impor a culinária inglesa sobre a cozinha magnificamente sutil e versátil da Índia, ou de forçar a nossa “Verdadeira Religião” no lugar das “superstições bobas” deles. A ciência, de certa forma, é um fenômeno culturalmente específico; mas também é universal. Ela emergiu em um determinado tempo e lugar, e as circunstâncias desse tempo e lugar são relevantes para ela ter surgido lá e não em outro local, naquele tempo e não em outro. Entretanto, ela é uma manifestação das capacidades cognitivas humanas, e é contínua com a investigação empírica cotidiana que pessoas de toda cultura fazem.
Thorp: De alguma forma, tornou-se uma ideia controversa reconhecer que os cientistas são pessoas reais. Para alguns, a noção de que os cientistas estão sujeitos ao erro humano e à fragilidade enfraquece a ciência aos olhos do público. Mas os cientistas não devem ter medo de reconhecer sua humanidade. Cientistas individuais sempre vão cometer um erro em algum momento, e a verdade objetiva que alegam estar defendendo sempre vai ser revisada. Quando isso acontece, o público compreensivelmente perde a confiança. A solução para esse problema é fazer o trabalho duro de explicar como o consenso científico é alcançado — e que esse processo corrige os erros humanos a longo prazo.
Haack: [O] quão boa é a aceitação geral [consenso] numa comunidade como indicadora da confiabilidade depende da natureza da comunidade em consideração. Nas áreas em que o trabalho é conduzido com rigor e as evidências são compartilhadas o suficiente, é provável que a aceitação geral seja razoavelmente bem correlacionada à garantia [epistemológica]. [Em outras áreas, o consenso] é um substituto pobre para a confiabilidade. Até mesmo em comunidades rigorosas e epistemologicamente eficientes, quando é um indivíduo em vez de a comunidade que tem a melhor (no sentido relevante) evidência, a aceitação geral pode ser um teste conservador demais.
Thorp: Um debate acalorado se instalou sobre se os antecedentes e as identidades dos cientistas mudam os resultados da pesquisa. Uma visão é de que a verdade objetiva é absoluta e, portanto, não está sujeita a influências humanas. “A ciência fala por si mesma” é geralmente o mantra neste campo. Mas a história e a filosofia da ciência argumentam fortemente em contrário. Por exemplo, Charles Darwin fez grandes contribuições para a ideia mais importante da biologia, mas seu livro The Descent of Man continha muitas afirmações incorretas sobre raça e gênero que refletiam sua adesão às ideias sociais prevalentes em seu tempo. Felizmente, a evolução não se tornou conhecimento no dia em que Darwin a propôs, e foi refinada ao longo das décadas por muitos pontos de vista. Mais recentemente, oxímetros de pulso que medem os níveis de oxigênio no sangue foram considerados ineficazes para a pele escura porque foram inicialmente desenvolvidos para pacientes brancos. Esses exemplos — e inúmeros outros — revelam o quanto de trabalho precisa ser feito para fortalecer a comunidade científica e a compreensão pública do processo.
Haack: O que agora chamamos de “ciência moderna” apareceu na Europa e foi na maior parte um trabalho de homens brancos. Pós-colonialistas, feministas e outros “críticos da ciência” às vezes reclamam que a ciência é racista e sexista — uma coisa masculina e branca. Essa é uma ideia tola. A ciência moderna deriva de esforços humanos muito mais antigos para entender o mundo; houve muitas antecipações importantes da ciência moderna: na China, no mundo árabe e em outros lugares; e hoje em dia há cientistas capacitados de praticamente todas as raças e gêneros. (…) [A]lguns cientistas sociais proeminentes da Índia favorecem o costume tradicional da variolação — inoculação com material de varíola humana, acompanhada de orações à deusa da varíola — acima da prática científica moderna da vacinação usando a vacina de varíola bovina, que é muito menos provável de causar varíola no paciente. Isso, a meu ver, é pior que tolice. (…)
[N]o que diz respeito às ciências sociais, alguns dos preconceitos aptos a atrapalhar a investigação honesta são políticos e profissionais. No que diz respeito às ciências físicas, dada a manifesta irrelevância do sexo, raça ou classe para o conteúdo da teoria física, as reclamações dos Novos Cínicos sobre a disseminação de sexismo, racismo, classismo etc. dentro delas parecem forçadas. Mas onde interessa às ciências humanas e sociais, dada a manifesta relevância de sexo, raça ou classe para o conteúdo de algumas teorias, preconcepções políticas e profissionais podem vir junto, e as alegações parecem só exageradas.
Thorp: Um grupo monolítico de cientistas trará muitas das mesmas noções preconcebidas para o seu trabalho. Mas um grupo de muitos antecedentes trará diferentes pontos de vista que diminuem a chance de que um conjunto predominante de visões viesse a influenciar o resultado. Isso significa que o consenso científico pode ser alcançado mais rapidamente e com maior confiabilidade. Também significa que as aplicações e implicações serão mais justas para todos. Como isso é uma ameaça ao rigor científico e ao mérito das descobertas? Infelizmente, estamos longe de alcançar esses objetivos. A ciência teve enormes problemas para construir uma força de trabalho que reflita o público a que serve. E agora, vários governos estaduais estão tentando tornar isso mais difícil, senão impossível, nas universidades públicas de seus estados, e até mesmo dentro da comunidade científica, há esforços para descarrilar a ideia de que importa quem faz a ciência.
Haack: Outras críticas feministas, pensando que a ciência é uma empreitada inevitavelmente política e, assim, muito informada por valores masculinistas, defendem a sua transformação pela infusão de valores mais progressistas e feministas; como se não tivéssemos aprendido, com os exemplos horrorosos da ciência nazista e soviética, que colocar pressão sobre os cientistas para chegar a conclusões politicamente desejáveis é flertar com o desastre. “A verdade — seja qual for! — não nos libertará”, escreve Sandra Harding, clamando por “pesquisa e trabalho acadêmico politicamente adequados”. Esse pensamento é de arrepiar. Também é incoerente; pois não podemos melhorar a posição das mulheres ao menos que possamos descobrir quais são os reais interesses das mulheres, e quais mudanças sociais realmente as fariam avançar.
Thorp: O slogan “confie na ciência” tem circulado recentemente. Essa abordagem é infeliz. Porque “a ciência” neste contexto é geralmente um instantâneo de ideias ou fatos em um determinado momento — e muitas vezes a partir da perspectiva de um pequeno número de pessoas (ou até mesmo uma pessoa). Teria sido melhor usar uma frase como “confie no processo científico”, que implicaria que a ciência é o que sabemos agora, o produto do trabalho de muitas pessoas ao longo do tempo, e princípios que alcançaram consenso na comunidade científica por meio de processos estabelecidos de revisão por pares e divulgação transparente.
Haack: Como as precauções tomadas contra a contaminação de laboratório etc., esses mecanismos são falíveis. Revisores imperfeitamente honestos podem ser tentados a impedir a publicação dos trabalhos dos rivais; revisores imperfeitamente qualificados podem não ter o conhecimento de fundo necessário para uma avaliação justa; revisores sem imaginação podem falhar em apreciar ideias verdadeiramente inovadoras. Há, além disso, um amplo espectro que vai da conjectura criativamente heterodoxa à patologicamente amalucada; a ideia doida não vem necessariamente marcada na testa como irremediável, nem a criativamente heterodoxa como promissora.
Thorp: Os cientistas devem abraçar sua humanidade em vez de fingir que são um bando de autômatos que chegam instantaneamente a conclusões perfeitamente objetivas. Isso será mais trabalho tanto em termos de garantir que a ciência represente essa humanidade quanto em explicar como tudo funciona para o público. Mas, em troca, a sociedade terá uma ciência melhor e mais justa, e permitirá que os cientistas se imerjam no glorioso e bagunçado processo de sempre buscar um maior entendimento da verdade.
Haack: Haverá aqueles — sem dúvidas serão muitos — que objetam que o dito por mim aqui revela um racionalismo estreito e cientificista. Isso é seriamente falso, pois sustentei o tempo todo que as ciências não são os únicos tipos legítimos de investigação, não a única fonte da verdade. Mas é verdade que quando Mencken, celebrando os triunfos sobre a natureza que a humanidade alcançou através do exercício de sua inteligência, diz que “tudo o que somos nós devemos a Satã e suas maçãs contrabandeadas”, embora eu pare para notar a falsidade literal dessas palavras, fico comovida com o espírito delas. Vejo uma nobreza na capacidade humana de intrigar-se, sonhar, calcular, checar e testar, de trabalhar para descobrir como as coisas são, de recusar o conforto falso, de tentar encontrar formas de fazer a vida melhor. Não peço desculpas por reservar minha maior admiração àqueles que “deleitam-se no exercício da mente, não importa aonde os leve”, assim como deleita a outros exercitar os músculos, àqueles para os quais fazer o melhor que podem com as suas mentes, sem barreiras, é “uma questão de honra”.
Eli: Para concluir, embora o editorial da revista Science não seja exatamente um manifesto identitário, ele faz concessões demais ao identitarismo, que eu afirmo que é a maior pressão atual contra a objetividade na ciência e a favor da censura de certos temas de pesquisa. Como de praxe, uma das maiores inconsistências dessa ideologia reproduzidas por Thorp é que a diversidade é muito linda, exceto a de ideias e visões de mundo dentro da política. Ele se importa com a cor e o sexo dos cientistas, mas não está nem um pouco preocupado se a comunidade científica, por motivos não científicos, é muito pouco diversa em pensamento político. Eu já documentei a má influência do identitarismo na ciência em textos como este e este. Alguém tem que resistir a este imperialismo ideológico, a esse potencial neolysenkoísmo.