Resposta ao Chanceler Augustus Nicodemus Gomes Lopes
O Dr. Augustus, na qualidade de autoridade máxima da chancelaria da Universidade Presbiteriana MacKenzie, achou proveitoso publicar no sítio eletrônico dessa universidade uma nota sobre ateísmo.
Começa com uma simpática citação do Salmo 14, e em seguida afirma que a descrença é tão antiga quanto a humanidade. Eu não consigo imaginar como poderia ser assim, se no livro considerado a pedra fundamental dessa instituição, a Bíblia, estão narradas tantas manifestações pirotécnicas da presença divina: com mares se abrindo; ursas atacando moleques que se punham a xingar profetas de careca; pessoas subindo aos céus como balões de hélio, algumas com carruagens de fogo, outras sem; brutamontes assassinando povos infiéis com o auxílio de nada mais que mandíbulas de javali; e messias dizendo que vêm para trazer a espada e que haverá choro e ranger de dentes.
Como poderia haver descrentes desde a aurora da humanidade, com todas essas manifestações claras e distintas da presença divina? Talvez agora, com o silêncio absoluto desse deus, possamos ter motivos para descrer, mas quando a humanidade estava em seu começo (quanto tempo, 6 mil anos, chanceler?), não, não tínhamos motivo algum para sermos tão insensatos!
Depois dessa brilhante introdução, o Dr. Augustus diz que o IBGE contabiliza os ateus brasileiros em meros 7%. O que não é exatamente o caso, dado que o IBGE se recusa a incluir ateísmo entre as opções de definição religiosa do censo.
Mas, considerando que seja verdade, imagino que o Dr. Augustus tenha alguma noção estatística de que, se 7% dos brasileiros são ateus, ao menos alguma fração dos alunos da Universidade MacKenzie é também de ateus. E aí está o chanceler da universidade, a acusar insensatez em parte considerável de seus pupilos. Deve um chanceler incentivar tal hostilidade?
Em seguida, Augustus cita o livro "Deus, um delírio" de Richard Dawkins, e especula:
“Penso que a popularidade da obra se deve mais à curiosidade das pessoas em ver os argumentos dos ateus contra a existência de Deus do que propriamente de encontrar ali a solução para dilemas existenciais.”
Eu imagino que a Filosofia conste entre as disciplinas oferecidas pela universidade do chanceler. Se ele se prestar ao trabalho mínimo de um dia humildemente se sentar entre os alunos dessa disciplina, aprenderá a separação clara que vários pensadores traçam entre epistemologia e ética. E que, se um livro quer questionar epistemologicamente a existência dos deuses, não tem a mínima obrigação de dizer como as pessoas devem agir (ou resolver seus dilemas existenciais). Para isso, temos coisas como as leis, a empatia, o amor entre as pessoas, que pelo que me consta, não têm evidência alguma de terem sido plantados na humanidade por mãos invisíveis, muito menos as mãos invisíveis de um deus particular nascido na idade do bronze, em detrimento dos milhares de outros deuses já propostos pelas mais diversas culturas.
Em seguida, Augustus diz que os argumentos desse livro são "velhos e desgastados". Por que seriam desgastados não fica claro, dado que ele não parece preocupado em descer de seu tom acusatório para refutá-los, o que seria mais intelectualmente honesto. E se a linguagem do livro é, segundo o chanceler, "ofensiva e ácida", que ele saiba que tem todo o direito de se sentir ofendido, mas que ultraje tampouco é refutação.
Depois, o chanceler, infelizmente, emite mentiras descadaras: afirma que Dawkins diz no livro que a ciência refutou Deus, que a religião é má e que a religião tem origem num "vírus da mente". Quando na verdade, o que Dawkins disse, junto com filósofos como Daniel Dennett e Sam Harris, é que a ciência moderna torna inférteis e improváveis as hipóteses divinas. Não é preciso muita refinação intelectual para compreender a diferença entre a caricatura feita por Augustus e o que de fato está no livro.
Sobre "vírus da mente", essa metáfora de fato é empregada, mas em alusão a todo um novo campo de pesquisa, que é a evolução cultural. Ou o Dr. Augustus espera que a cultura seja criada especialmente por Deus junto com os animais e as plantas? "Vírus da mente" também se refere à compreensão crescente que temos dos mecanismos neurofisiológicos de aquisição de crenças sem referência alguma no mundo sensível, como os deuses. Harris, Sheth e Cohen são alguns pesquisadores pioneiros nesse campo. O que mostram é que, grosso modo, acreditar em deuses não é fisiologicamente diferente de acreditar no Curupira ou no Saci.
Portanto, dizer que os argumentos do livro de Dawkins não têm "embasamento na realidade" não passa de um delírio do Chanceler Augustus. O chanceler, por fim, comete uma falácia (argumentum ad verecundiam) ao alegar que cientistas "do mesmo calibre de Dawkins" acreditam em Deus. Isso não é uma inverdade, dado que temos Francis Collins. Entretanto, as premissas de Collins em favor de "Deus" não têm nada a ver com ciência, ou seja, não têm referência alguma em evidências. Apenas homilias morais, arrebatamentos ético-estéticos, como de praxe.
Mas mesmo no campo das falácias Dr. Augustus não se dá bem, pois a esmagadora maioria dos cientistas não acredita em um deus pessoal.
Quanto à afirmação do Dr. Augustus, de que "regimes ateístas" mataram mais que qualquer cruzada, carece de fontes. Se se refere aos regimes comunistas, sabemos muito bem o que o culto à personalidade e o dogmatismo dos comunistas, análogos perfeitos das religiões, podem fazer.
Encerrando, o Chanceler Dr. Augustus Nicodemus Gomes Lopes diz vagamente que há quem responda aos argumentos de Dawkins (que é tarefa da qual o chanceler quis se eximir), e entre essas pessoas está Alister McGrath. Tanto pior, pois Alister McGrath tem escrito livros falaciosos que simplesmente fogem da questão contida no livro de Dawkins: se é preciso um deus para explicar a origem da complexidade, de onde vem a complexidade do próprio deus? Por isso, deuses nunca explicaram nada. Não passam de péssimas hipóteses, por mais consoladoras que sejam.
Mentes, como diz Dawkins, vêm tarde no processo histórico do universo. Postular uma mente gigantesca, onisciente, onipotente, onipresente, e ainda preocupada com o destino e as vidas de criaturas insignificantes em planetas insignificantes nos subúrbios das galáxias, não faz o menor sentido.
Creio que um chanceler tenha coisas mais nobres para se preocupar, em vez de lançar argumentações falaciosas e discriminatórias no sítio eletrônico de sua universidade.