Izquierdo tem razão, psicanálise é obsoleta
Há algumas semanas, sonhei que minha mãe molestava minha irmã. Não comentei a respeito com elas, não me preocupei com isso, e teria esquecido se não estivesse numa semana com sonhos particularmente vívidos. Graças à Santa Mielina, não houve detalhes gráficos no pesadelo, apenas algumas cenas da minha irmã reclamando do problema e eu me chocando (no sonho) que nossa mãe católica e amável fosse capaz de uma coisa tão abominável. Mas ela não é - foi apenas um pesadelo besta. Não li grandes mistérios por trás disso.
Durante o meu dia, é comum que eu pense em quebra-cabeças éticos. Disputo a crença de muita gente de que emoções são necessárias para a moralidade, e o incesto é um exemplo interessante pois incita na maioria de nós uma forte repulsa (anedoticamente, parece que a repulsa é mais forte em quem tem irmãos do que em filhos únicos, o que faz sentido dada a raiz biológica do tabu do incesto), enquanto é possível imaginar situações em que não é errado, no sentido de não gerar consequências negativas para ninguém. Ou seja, embora tenhamos sentimento de repulsa, ele não é suficiente, e talvez sequer necessário, para o julgamento moral de toda situação que envolve incesto (lembre-se, aqui, que nem todo incesto envolve abuso sexual de menores). Outro exemplo de que emoções são divorciáveis da conduta ética está num experimento mental que propus: imagine que uma criança precisa ser operada para não morrer de apendicite, e o cirurgião é um psicopata com prazer em abrir pessoas. Os sentimentos ruins a respeito de um sádico cortando uma criança por prazer - medo, repulsa, nojo - precisam ser deixados de lado para salvar a vida da criança - o que será feito pela consideração racional dos riscos e benefícios. Essas emoções não são nem necessárias nem suficientes para decidir o que é melhor para a criança, podem até atrapalhar. O melhor desse experimento é que posso informar que o cirurgião psicopata realmente existe e vive no nordeste brasileiro. Fui comunicado da existência dele por uma amiga em comum. É um ótimo cirurgião. A família notou cedo que ele tinha prazer em desmembrar animais e o direcionou para a medicina, redirecionando os impulsos que poderiam ter gerado sofrimento no mundo para salvar vidas. Ele não teve problema em se acostumar a ver pessoas abertas e ensanguentadas, como outros cirurgiões têm em início de carreira. E ele, é claro, tem a racionalidade para julgar suas ações, e o fato de que psicopatas podem ser éticos reforça minha hipótese de que as emoções (das pessoas comuns) não são necessárias, ou suficientes, para a moralidade.
No dia em que tive o pesadelo, pensei na minha família e pensei em incesto em momentos distintos, e na hora de consolidar as memórias do dia meu cérebro juntou as duas coisas, num emaranhado maluco com um enredo sem pé nem cabeça, o que é uma descrição sucinta da maioria dos sonhos, especialmente os que ocorrem nas fases de movimento rápido dos olhos, que têm probabilidade mais alta de serem lembrados. Enquanto o enredo dos sonhos não faz muito sentido - o que em si é um sinal de que os sonhos estão ligados à consolidação das memórias em fases específicas do sono - faz sentido que família e incesto sejam memórias ligadas por contexto, e nossas memórias têm essa característica: em vez de serem catalogadas como a memória do computador, são armazenadas de acordo com a co-ocorrência contextual. Devo acrescentar que a cena do pesadelo acontecia na casa em que passei a maior parte da minha infância, o que informa aos neurocientistas que se trata de memória episódica antiga sendo reconsolidada e acomodada de acordo com memórias mais recentes. Com essa informação, os neurocientistas conseguem até prever com certo grau de precisão em que fase do sono eu tive o pesadelo, e que, como foi na fase final do sono, de manhã, tem algo a ver com os efeitos da concentração crescente do hormônio cortisol no hipocampo, como discutem, por exemplo, Jessica Payne e Lynn Nadel numa revisão de 2004.
Mas, segundo psicanalistas, eu deveria ter lido alguma coisa mais "profunda" que uma mera consolidação de memórias do dia nesse pesadelo. Por que um homem gay como eu sonharia com uma coisa desse tipo? A psicanálise não concluiria nada sobre minha mãe e minha irmã com esse pesadelo, espero, embora psicanalistas pareçam ser particularmente obcecados com "complexos" incestuosos. Antes, concluiria algo sobre mim. Com que métodos? Adivinhação e evidências anedóticas.
Foi justamente na obra "A Interpretação dos Sonhos" (1899) que Sigmund Freud começou a propor sua teoria do "complexo de Édipo". Que podemos resumir assim: toda criança tem atração sexual pela mãe, pelo pai, ou pelos dois. Segundo Freud, os sonhos existem para que o inconsciente encontre uma forma de realizar nossos desejos mais íntimos. Segundo os psicanalistas, meu sonho quer dizer que eu, que acho Henry Cavill extremamente atraente, desejo ver envolvimento lésbico entre membros da minha família. Você deve estar brincando, Dr. Freud! Isso, à luz do que sabemos graças à neurociência e ciências cognitivas, é um disparate pseudocientífico, e deve ser tratado como tal.
É claro que os psicanalistas modernos alegarão que estou fazendo um espantalho da sua "teoria" (que mal merece o status de hipótese), embora tudo isso que eu disse esteja em Freud e em muitos de seus defensores modernos. Farão um esforço de reinterpretar meu pesadelo de uma forma que faça mais sentido e soe menos como um disparate pseudocientífico. Mas esse não será um exercício de pesquisa e de mudança de opinião com base em novas evidências coletadas: será um exercício de construção de epiciclos. Quando os astrônomos ptolomaicos antes de Kepler tentavam insistir que a órbita dos planetas era perfeitamente circular, por um viés estético herdado de Platão e Aristóteles, eles tentavam explicar as anomalias na órbita observável dos planetas com a introdução de círculos no topo dos círculos de translação em torno da Terra (pois acreditavam no geocentrismo): os epiciclos. Alguns botavam tantos epiciclos hipotéticos na órbita dos planetas que os cálculos ficavam quase impossíveis de verificar, então poderia ser verdade que só há círculos na órbita dos planetas, e isso é tudo o que importa. Para muitos psicanalistas de hoje, o que importa é que a psicanálise poderia ser verdade, não que ela não parece ser verdade de acordo com as evidências coletadas por cientistas. Alguns chegam a abandonar o barco das pretensões científicas da psicanálise, alegando que psicanálise jamais se pretendeu ciência (o que é revisionismo histórico conveniente), ou se juntam ao comboio amalucado dos pós-modernistas, construindo frases sem sentido como essa:
"A psicanálise não se propõe a disputar com a ciência o lugar de portadora da verdade, mas interroga os efeitos que têm sobre nós, sujeitos humanos, as palavras e discursos que nos constituem – que são necessários, porém sempre insuficientes para dar conta de nossa experiência." - Paulo Gleich no Sul 21.
Em primeiro lugar, como se interroga algo sem pretensão de portar a verdade, especialmente quando o intuito é lidar com os problemas psicológicos de um indivíduo? Devo assumir, então, que se eu me deitar no divã do Paulo Gleich não devo esperar resposta quanto a ser verdade ou inverdade que estou estressado, quanto a ser verdade ou falsidade que preciso de um namorado, etc.? Além disso, quais são as palavras e discursos que me constituem? Essas que estou escrevendo agora me constituem? Se eu rejeitá-las ou esquecê-las amanhã (certamente durante um sonho em que o Scooby Doo sodomiza o Scrappy Doo), deixarão de me constituir? As coisas que Gleich disse são um exemplo clássico do que Harry Frankfurt descreveu como "bullshit".
São também exemplo de algo que aconteceu justamente pela falha da psicanálise em se manter de pé diante do avanço das ciências rigorosas do cérebro e da mente: uma fuga para o dadaísmo conceitual, em que verdade, objetividade e outras facetas da razão são coisa de gente "ingênua", provavelmente gente ingênua que deseja charutar seus progenitores. Muito se discute sobre Freud (num personalismo também incompatível com o proceder científico), mas, mesmo entre acusações de fraude e de tolice - quando por exemplo ele diagnosticou críticas da psicanálise como neuroses - poucos duvidam que ele tinha grande respeito pela ciência e gostaria de saber mais sobre o cérebro. Se realmente é assim, ele deve girar mil vezes no túmulo quando escuta que seu suposto discípulo Jacques Lacan alegou que o pênis é análogo à raiz quadrada de -1 (i), entre outros disparates psicanalíticos abusando da matemática resenhados em "Imposturas Intelectuais" de Alan Sokal e Jean Bricmont. Freud também se espantaria de ver a péssima influência dos psicanalistas sobre a integração social e tratamento de autistas e suas famílias, culpando os pais pelas dificuldades de neurodesenvolvimento das crianças autistas. Tudo, novamente, baseado em evidência anedótica e especulação, que, como os homeopatas, os psicanalistas preferem chamar de "estudo de caso"/"pesquisa qualitativa" e "teorização". Enquanto isso, a genética descobre que mais da metade da variação do autismo é explicável por variantes genéticas comuns em combinações raras.
No Brasil estamos agora discutindo bastante a corrupção política. Mas ainda precisamos lidar com outro tipo de corrupção: a corrupção intelectual de comunidades dogmáticas herméticas, entre elas a da psicanálise e da homeopatia, que parasitam recursos públicos sem ter evidência da verdade de suas teorias, a um ponto tão cínico que alguns até dizem que verdade de teorias não é o que mais importa. Pois estão errados. Mais errados que o incesto.
*** Não deixe de ler este texto sobre Freud e o início da psicanálise na revista Crítica.
Confira referências da minha entrevista com uma mãe de autista no post Autismo: Teoria e Prática.
Referências:
Payne, J. D., & Nadel, L. (2004). Sleep, dreams, and memory consolidation: The role of the stress hormone cortisol. Learning & Memory, 11(6), 671–678. http://doi.org/10.1101/lm.77104
Sokal, A., & Bricmont, J. (1999). Imposturas intelectuais: o abuso da ciência pelos filósofos pós-modernos. Rio de Janeiro: Record, 198–200.
Frankfurt, H. G. (2005). Sobre falar merda. Tradução Ricardo Gomes Quintana. Rio de Janeiro: Intrínseca. P.S.: Aparentemente, a crítica mais comum que estou recebendo pelo texto é por dizer que "segundo psicanalistas" meu sonho seria interpretado literalmente como um desejo inconsciente meu. Eu concordo que usar a expressão "segundo psicanalistas" foi sugestivo de que algum psicanalista realmente disse isso, quando nenhum disse isso a mim diretamente. Eu apenas segui as implicações da alegação de que os sonhos são manifestações de desejos inconscientes. Desde o princípio psicanalistas propuseram interpretações convolutas de sonhos, e realmente não eram tão literais, só que eram, sim, interpretações do conteúdo dos sonhos. Essa história de que a psicanálise "rejeita a visão hermenêutica dos sonhos" (uma forma desnecessariamente complicada de alegar que não faz interpretação do conteúdo dos sonhos) é contradita pela própria história da psicanálise. Na verdade os psicanalistas insistiam em fazer interpretação dos sonhos, contanto que quase tudo virasse sexo. Até subir uma escada em sonho é interpretável como o ato sexual para psicanalistas históricos: http://criticanarede.com/freud.html Mas como eu previ no próprio texto, nenhum psicanalista de hoje admitira seguir as próprias alegações psicanalíticas sobre os sonhos para o meu sonho, e me acusariam de falácia do espantalho. O que isso mostra é mais uma faceta do caráter pseudocientífico dessa prática intelectual: o obscurantismo. Não importa se está fortemente sugerido em obras seminais da psicanálise que os sonhos devem realmente ser interpretados como manifestações de desejos inconscientes, sempre há algum epiciclo a ser levantado para manter a ideia obscura e "profunda" quando alguém tenta esclarecê-la e mostrá-la falsa. É uma estratégia comum em adeptos dogmáticos dos mais variados tipos de crenças: afirma-se algo obscuro, que se for esclarecido cai em alguma afirmação excitante mas falsa ou verdadeira porém apenas um truísmo enfadonho. Para manter a versão excitante e falsa, acusa-se quem esclareceu a afirmação obscura de falácia do espantalho e de não estudar o suficiente. O caso é que não há como estudar o suficiente. Críticos jamais serão ouvidos ao menos que parem de criticar e virem adeptos.