Preto, branco, e tons de cinza - o caso do racismo que não parecia racismo
Como estou na Universidade de Brasília, que, se não me engano, foi pioneira na implantação de Cotas para negros, vou colar aqui uma discussão travada num grupo de emails do Centro Acadêmico de Biologia (Grupo CABio no Yahoo!) sobre um incidente que foi noticiado nacionalmente na TV.
O incidente ao qual eu me refiro foi o incêndio no quarto dos africanos.
Relato da Secretaria de Comunicação da UnB:
"Na manhã de 28 de março de 2007, comunidade da Universidade de Brasília iniciou suas atividades assustada com a violência sofrida por estudantes africanos moradores da Casa do Estudante Universitário (CEU) na madrugada anterior. Eles acordaram por volta das 4h com as portas de seus alojamentos incendiadas e com muita fumaça no interior dos quartos. Grande parte deles escapou das chamas saindo pelas janelas dos apartamentos. O fogo atingiu quatro apartamentos. A primeira medida tomada pela UnB foi acionar as polícias Civil e Federal e remover as vítimas da CEU."
Um ou dois dias após o incidente, certos estudantes saíram fazendo barulho pelo Campus protestando contra "racismo". No dia 29 de março, apareceu no Grupo CABio uma mensagem com o título "TERRORISMO NA UNB". Eu me recusava a aceitar a correlação automática que fizeram entre racismo e o atentado, e a classificação que fizeram do atentado como "terrorismo".
Sugeri que o autor do email estaria sendo dramático demais, como os outros estudantes que fizeram o protesto que vi em frente ao Restaurante Universitário (RU), ao que ele respondeu " Sim Eli, estou sendo dramático sim. Mas acho que a situação exige que sejamos dramáticos". A discussão seguiu assim (email meu):
"OK, seja dramático. Quanto a isso, só posso emitir minha humilde opinião de que a dramaticidade é o limiar da irracionalidade, e a irracionalidade tende à interpretação deturpada dos fatos. Da mesma forma alguns moradores da CEU (Casa do Estudante Universitário, onde aconteceu o incêndio) poderiam declarar "a resistência à socialização dos africanos da CEU vem de longa data...".
É o que vi alguns moradores afirmarem, e palavras assim merecem tanto crédito quanto o que foi dito sobre os africanos terem de enfrentar a animosidade injustificada dos outros moradores há tempos. Não vou entrar no mérito da questão, é impossível saber quem tem razão, e é possível mesmo que seja um mosaico de razão entre as partes.
Terrorismo não é qualquer ação deletéria de um grupo. Este grupo precisa estar filiado a um rótulo particular (nazista, muçulmano) que é a suposta antítese de um rótulo-alvo (judeu, cristão), e as pessoas sob este rótulo-alvo muitas vezes não pertencem verdadeiramente a ele, até porque a classificação do terrorista é obtusa e obscura para seus próprios fins. Não há razão para achar que na UnB existe um grupo de pardos (como o suspeito que você citou) ou de quaisquer pessoas filiadas a uma ideologia particular que vise o contrangimento dos negros e/ou estrangeiros. Mas se houver, não duvido que seja uma pequena célula de tolos baderneiros confusos, que é diferente de uma organização terrorista.
Também não vi consistência na conclusão apriorística de que o atentado foi racista. No dia do ataque alguns já saíram dizendo "vem gritar conosco contra o racismo porque botaram fogo nos apartamentos dos africanos". Por que se encontra esse tipo de lógica irracional na UnB? Foi aí que liguei o acontecido às cotas. Penso que elas têm responsabilidade na criação de tensão que leva certas pessoas a pensarem que se um negro sofre alguma coisa na UnB só pode ser resultado de racismo. (Veja bem, não estou falando que fizeram o atentado por causa das cotas!) Por isso acho que a primeira manifestação (que vi no RU) só pode ter sido irracional e crédula. Até aquele ponto nada havia sido apurado para corroborar a tal conclusão, e acho que ainda não há. Se houver, ou quando houver, quero ser informado, pois serei um defensor passional da ação contra o preconceito no caso se as evidências apontarem para ele.
Discriminar é separar, segregar, classificar. Vejam se há homogeneidade suficiente entre as etnias africanas para jogá-las num balaio e chamar todos de negros. É uma classificação inútil baseada num aspecto morfológico simplório. Eu sou um mestiço, mas antes disso, sou um cidadão que merece tantos direitos quanto os outros. Nunca vou me engajar em qualquer programa para assistência de mestiços, e pouco me importa se o IBGE me classifica como branco, mestiço, pardo ou coisa assim. Me importa é se vão se fazer algo pelos estudantes pobres, não interessa a morfologia deles. Sinceramente, Eli"
Apareceu então um texto de um estudante de Relações Internacionais, disponível na íntegra neste link.
Eis minha resposta a este email, citando trechos do aluno de REL em amarelo:
"Novamente a lógica distorcida. Denovo a afirmação de que se foram só os apartamentos dos africanos atacados isso significa que o que eles têm em comum como vítimas é só a cor da pele, e que essa é a única característica que têm em comum que foi alvo dos que fizeram o ataque. Não é. A hipótese de xenofobia é sim tão plausível quanto a de racismo, se não melhor.
"Novamente o racismo aparece como um tabu insuperável, procuram-se outros motivos que explique o racismo, e agora o da xenofobia, tudo com o intuito em negar o fato de sermos racistas."
Que FATO é este? Eu não nego que existe o interesse de negar cegamente que existe racismo, até por ingenuidade, e às vezes por interesse ideológico também. Também me pergunto por que é que há esse interesse de dizer que somos todos racistas e que isso é um fato.
"de etnia negra" - e novamente a simplificação da heterogeneidade dos povos africanos em favor de uma classificação do senso comum nem um pouco criteriosa. Não se devia usar o senso comum arbitrariamente como régua de criação de políticas públicas também.
"Os movimentos sociais que defendem as cotas e outras medidas afirmativas para os negros, indígenas e mulheres precisam se valer de políticas que assegurem a identidade destes grupos, já que são elas que, de alguma forma, por causa do preconceito, do racismo, da xenofobia e afins, os impossibilitam de fazerem jus aos mesmos direitos universais a que poucos têm acesso."
Assegurar a identidade não precisa ser segregação. Uma vez vi um cartaz de um movimento negro com citações de vários escritores em defesa da igualdade étnica. Nenhum dos escritores, até onde sei, era não-negro. Será que esse tipo de segregação está mesmo ajudando a identidade de alguém? O movimento feminista chegou a extremos tais que provocam até risos. Afirmou-se até que a Mecânica dos Fluidos é machista nas suas teorias. Em vez de ficar fazendo barulho irritadiço, eu aconselharia um fomento maior à socialização, e um pouco mais de estudo sobre o que é pertencer a uma etnia afinal, ou até mesmo o que é pertencer a um sexo, o que é pertencer a uma nação.
"mas são os veículos pelos quais nosso racismo jogado pra debaixo do tapete acha para se locomover entre nós disfarçadamente, através da pecha de discurso lógico e racional, nunca racista."
O que posso concluir do trecho acima é que o racismo é uma força etérea, uma entidade sobrenatural, quase um demônio, e vaga entre nós sob diversas formas, e é capaz até de possessão ideológica. É muito comum em debates demonizar a opinião "adversária", transformá-la num boneco de Judas que fica mais fácil de ser surrado.
O que muito pouca gente quer é analisar os fatos com um pouco menos de paixão e um pouco mais de ceticismo. Daqui a pouco vou ler respostas a este email (se é que alguma aparecerá) ao estilo "ideologia X, ame-a ou deixe-a".
Ou "se não está comigo está contra mim". Nesse caso eu abraçarei de bom grado o rótulo e sacrificarei alguns bodes ao meu racismo etéreo que se esconde no âmago mais profundo do meu epitélio intestinal. Esperançosamente, Eli"
Eis que a Polícia Federal encerrou o caso o tratando como XENOFOBIA, e não Racismo.
Se há algo que pode ser aprendido deste caso, é que tanto as cotas quanto o racismo cassificam as pessoas em PRETO e BRANCO, ignorando, para seus próprios fins, inúmeros e problemáticos tons de cinza.
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Post Scriptum
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A seguir uma resenha por mim apresentada à disciplina "Evolução Humana", no primeiro semestre de 2008, na Universidade de Brasília.
Diz respeito a um artigo "científico" do século XIX tipicamente racista:
“On the Skin, the Hair, and the Eyes, as Tests of the Races of Man”, de John Crawfurd (Transactions of the Ethnological Society of London, 1868)
Acertadamente, Crawfurd identifica grande dificuldade de classificar grupos humanos com base apenas na coloração da pele. Entretanto, paradoxalmente, o autor realiza uma incessante descrição obtusamente subjetiva dessa característica morfológica, sugerindo apenas no final que raças podem ainda ser defensáveis apesar das dificuldades. Usa termos como marrom, marrom-amarelado, marrom-avermelhado, vermelho, marrom-claro, preto, amarelo, e – o que é de pasmar – “fair” (que significa tanto “claro” quanto “belo” no inglês); apesar de admitir que existem problemáticas gradações de coloração em cada população, e se exime de propor uma classificação objetiva – então como sustentar tantas afirmações (por exemplo, de que “esquimós são tão escuros quanto malaios”)?
O mesmo, neste trabalho, é descrito com alguma variação em padrões quanto à textura e cor do cabelo, posição dos olhos, e distribuição de pêlos pelo corpo e barba. Ainda critérios com alto grau de subjetividade, que não são fundamentos sólidos para apoiar as afirmativas e conclusões de Crawfurd (nada garante que não existam cabelos do tipo “lã de carneiro” também entre europeus, além de africanos como alegado).
O autor declara a inexistência de evidências para uma “raça nativa preta ou marrom” habitando no passado a Europa. Isso o tempo pôde curar, com a moderna Genética de Populações aplicada à Evolução Humana. Mas, para evitar a conclusão de parentesco entre brancos e negros, o autor alega também que não há fundamento nenhum para acreditar nisso, o que já está desatualizado para seu tempo, pois já estava publicado o “Origem das Espécies” – portanto, bases poderiam apoiar a hipótese de ancestralidade comum e habitação antiga de negros na Europa, por mais desacreditada que fosse.
Um erro crasso de Crawfurd, que também não pode ser justificado pela época em que o trabalho foi escrito, é classificar tanto as supostas raças humanas quanto outros animais em “superiores” e “inferiores”. O próprio autor entra em contradição – haveria uma única raça ou várias raças dentro da Europa? E, novamente, como acreditar na palavra de Crawfurd sobre um povo ser mais escuro que outro, quando o próprio admite que é difícil propor um método objetivo de classificação que distinga uma “raça” da outra?
A asserção de que os ameríndios são predominantemente homogêneos na cor da pele, dos nativos da Terra do Fogo aos Esquimós (Inuits), é enormemente irresponsável, mesmo de um ponto de vista subjetivo. Crawfurd parece ter feito grandes conclusões a partir de amostras viciadas, e pretende mostrar que há maior heterogeneidade entre os povos da Europa – provavelmente porque foram os povos em que ele pôde demorar-se mais em observar.
Além disso, Crawfurd faz conclusões pouco parcimoniosas e demasiado crédulas sobre, aparentemente, dados escassos, quando afirma que não há relação entre cor da pele e incidência de luz solar. Embora a relação não seja perfeita, ela existe (e poderia ser testada pelo autor), e Crawfurd não tinha evidências suficientes para dispensar esta hipótese com tanta segurança quanto foi demonstrada.
Crawfurd erra também em estimar o futuro. Proclama que o problema de entender a distribuição de cores de pele é inescrutável, também sem boas razões.
O exemplo usado do leão e do tigre poderia ser mais desenvolvido pelo autor. Afinal de contas, mesmo no século XIX não seria difícil ver que é muito difícil que leão e tigre se intercruzem, enquanto o cruzamento entre as “raças” humanas acontece e é viável.
Se a natureza distingue “menos definitivamente” as “raças” humanas por cor, não seria simplesmente porque não há raça humana, apenas polimorfismo morfológico de uma espécie homogênea? Crawfurd evita este raciocínio, o que é lamentável para uma mente que deveria estar aberta à típica prospecção científica já comum no século XIX.