Opiniões, mentes e peixes
Buscar pela verdade absoluta, ou seja, algo 100% objetivo, inatacável, irrefutável, indubitável, é pura perda de tempo.
Simplesmente não temos ferramentas de estabelecer certezas absolutas sobre nada. Os atributos epistemológicos “objetividade” e “subjetividade” estão sempre presentes em algum grau em tudo o que for proposto como conhecimento.
Se eu proponho que Angelina Jolie é bela (ou seja, agrada a meus olhos), isso é altamente subjetivo, entretanto, certas razões pelas quais Angelina Jolie agrada meus olhos podem ser objetivamente estudadas: as proporções de seu corpo e de seu rosto, sua postura, seu comportamento. Essas razões servirão para alguma mínima objetividade que unirá a minha apreciação de Angelina Jolie a outras pessoas que também a apreciam.
Nossa objetividade máxima corresponde à nossa subjetividade mínima. Nossa subjetividade mínima inevitável está demonstrada no teorema da incompletude de Gödel, que formaliza matematicamente a auto-referência do conhecimento objetivo. (Fonte: Curry. Foundations of Mathematical Logic. Dover, 1976.)
Isso NÃO DÁ ESPAÇO para o relativismo epistemológico (que eu achar Angelina Jolie bonita seria uma proposição tão certa quanto eu afirmar que existe um esquilo planador). Pois existem, como dizia Asimov, gradações de erro (dizer que a Terra é esférica é errado, mas não é mais errado que dizer que a Terra tem formato de pizza), ou seja, gradações de subjetividade e de objetividade, que são indiretamente proporcionais.
Vale a pena conhecer, então, se tudo tem uma porção de subjetividade? SIM!
Primeiro, porque conhecendo mais, investigando mais, o conhecimento se torna funcional, ou seja, conseguimos fazer previsões sobre o que ocorre no mundo que nos cerca, dadas as variáveis envolvidas nos eventos que queiramos prever.
ISSO SALVA VIDAS.
O conhecimento de que as entidades biológicas evoluem fará com que eu seja mais cuidadoso em administrar antibióticos e drogas antivirais para as pessoas. SALVANDO VIDAS. O conhecimento de que deuses e sacis situam-se no mesmo campo que carece de evidências mostra que não vale a pena morrer esperando ter certeza de que encontrará Jesus, e não Anúbis ou Hades, no além. SALVANDO VIDAS.
O conhecimento de que a parte da Bíblia em que Jesus diz para brincarmos com cobras foi provavelmente adicionada posteriormente por um escriba, injustificando a prática de alguns pentecostais que ficam manipulando cobras peçonhentas, SALVA VIDAS.
CONHECER serve para RESOLVER PROBLEMAS.
Resolver problemas é funcionar. E a Ciência é um conhecimento funcional. A tal ponto que muitas vezes suas teorias se sobrepõem ao conhecimento empírico imediato, e são tão críveis quanto este.
Se há a Verdade, não vejo por que outras atividades cognitivas não-racionais estariam mais próximas dela do que a razão.
Se há a Verdade no mundo sensível, não vejo maneira melhor para atingi-la do que a empiria.
Se a ciência está vulnerável para ser concebida como maquinação do Gênio Maligno (de Descartes [Fonte: “Meditações...” de Descartes]), sim, está. Mas Popper tem toda a razão quanto a isso não ser tão importante quanto os famintos pela Verdade pensam que é. (Fonte: Karl Popper. Conjeturas e Refutações)
Funcionar é maravilhoso por si só. Se não compreendo todas as línguas para conhecer toda a literatura produzida, posso fazer a amostragem de ler apenas o que foi feito nas línguas que domino, o que inclui traduções.
Se não posso sair de casa para correr e fortalecer meu corpo, correr em círculos dentro de casa é melhor que se deixar consumir pelo ócio.
Então, se não há Verdade ou Certeza, é suficiente que eu tenha um conhecimento funcional.
É difícil que fundamentos últimos permaneçam de pé quando até mesmo a Lógica é questionada e classificada como mera parte integral dos “jogos de linguagem” (como faz Wittgenstein em suas últimas obras Fonte: Ludwig Wittgenstein. Da certeza), ou classificada como auto-referente pelo teorema de Gödel.
Se não há fundamentos universais em conformidade com a Verdade ou a Certeza (se elas “são”), é suficiente que os fundamentos sejam construídos sobre as nossas incertezas e possamos regrá-las mais ainda.
Se não há alicerce para o edifício do conhecimento, que ele seja então uma nave flutuando sobre o caos.
E nessa nave que flutua sobre o caos, já adquirimos conhecimentos sobre o que são mentes. Nosso conhecimento neurofisiológico já versa sobre como funciona a aquisição de crenças pouco referenciadas no mundo sensível (como Curupira, sacis, fadas, gnomos, deuses), e já compreendemos a mente como uma entidade histórica, improvável e contingente (por causa da evolução). (Ver referências de meu amigo Camilo em “Eis o mistério da fé”: http://camilojr.blogspot.com/2009/01/por-que-acreditamos-em-deus.html )
Mas isso diz respeito à mente humana moderna. E sobre suas origens?
Sabemos que existe uma espécie batizada de Homo sapiens, que somos nós, dotada de mente. Esta mente faz criações, esta mente estabelece propósitos e teleologias (finalidades) em suas criações.
A história começa cerca de 500+ milhões de anos atrás, quando surgiram os primeiros sistemas nervosos. Segundo hipóteses modernas (que não são concebidas em sonho ou em imaginação desenfreada, mas baseadas em evidência), como a hipótese de Placula (Schierwater, B. et al. PLoS Biol. 7, 2009), os sistemas nervosos tiveram duas origens. Mas não está mais em disputa uma coisa: as homologias entre o sistema nervoso humano e dos outros animais são claras, e com a maioria deles evidencia ancestralidade comum.
Os primeiros neurônios permitiram um repertório maior de fenótipos. Por exemplo, detectam movimentos, moléculas, luz, permitindo uma regulação mecanística do movimento do ser vivo de acordo com esses estímulos. (Fonte: Alberts et al. Molecular Biology of The Cell. Garland Science, 2002)
Aliás, nem é preciso ter neurônios para manifestar esse “comportamento”. Várias algas, como as do gênero Volvox, são capazes de, por seus mecanismos moleculares internos, nadar em direção à luz. (Fonte: Raven. Biologia Vegetal [qualquer edição])
Sistemas celulares e moleculares quase tão simples quanto os das algas Volvox permitem que sistemas nervosos extremamente simples, como o sistema nervoso difuso das águas-vivas (Fonte: Ruppert & Barnes. Zoologia dos Invertebrados [qualquer edição]), executem esse comportamento. Preciso dizer por que o comportamento de nadar em direção à luz ou longe da luz, em direção à fonte de moléculas voláteis, ou para longe da fonte de moléculas voláteis, é nada mais que uma adaptação?
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Creio estar claro por que seria uma adaptação. Uma vez que surjam canais iônicos e outras proteínas em células que se tornam excitáveis (como neurônios e músculos), terão mais sucesso reprodutivo aquelas variedades de sistemas nervosos/musculares que permitam ao organismo fugir dos predadores e achar alimentos e parceiros de cópula.
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Como isso diz algo sobre a mente humana? O nosso cérebro é feito praticamente do mesmo tipo de célula dos sistemas nervosos difusos das águas-vivas e pólipos. As sinapses acontecem da mesma forma, os potenciais de ação (impulsos nervosos propagados ao longo do neurônio) acontecem da mesma forma também. (Fonte: Roberto Lent. Cem Bilhões de Neurônios / Wong & Wong (ed.). Neuro-Signals - Invertebrate Neural Networks. Karger, 2004.)
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Como já está estabelecido, sempre que houver uma relação ecológica desarmônica entre duas espécies, elas tenderão a evoluir do modo “corrida armamentista”. Já evidenciamos inclusive passos da corrida armamentista entre pulgas dágua e seus parasitas (Fonte: Gee, Howlett & Campbell. 15 joias da evolução. Nature, 2009 http://evolucionismo.ning.com/profiles/blogs/15-joias-da-evolucao ).
Então, entre vários motivos que temos para os sistemas nervosos terem ficado mais complexos, um deles é a corrida armamentista adaptativa.
Entre os períodos pré-cambriano e cambriano, várias pressões seletivas (fatores que promovem seleção natural) agiram sobre sistemas nervosos simples, originando modelos que sobrevivem até os dias atuais. Temos, por exemplo, o modelo de sistema nervoso dos platelmintos, em que gânglios e nervos se alternam numa estrutura parecida com uma escada de corda (em planárias). E esse sistema explica vários comportamentos e características dos platelmintos, como as planárias, que podem se regenerar depois de despedaçadas - não há um centro nervoso único como um 'cérebro' que precise ser protegido pela planária. (Fonte: Ruppert & Barnes. Idem.)
O que isso tem a ver com a mente humana? Nós temos um cérebro que recebe informações dos sentidos (exceto de nervos que partem dos olhos, do ouvido interno e da mucosa nasal) principalmente por via da convergência de fibras nervosas para a medula espinhal (cordão nervoso). Esse cordão nervoso, quando surge no desenvolvimento embrionário, é adjacente a uma estrutura chamada notocorda. A notocorda foi achada em fósseis do cambriano, como o Pikaia (Fonte: Thomas et al. Evolutionary Exploitation of Design Options by the First Animals with Hard Skeletons. Science, 2000). Existem comportamentos humanos completamente dependentes da medula espinhal, como o reflexo da patela, e boa parte da propriocepção (existem descritos muito mais que 5 sentidos, propriocepção é um deles - ou uma modalidade contendo alguns deles). (Fonte: Roberto Lent. Idem.)
Entre os vertebrados, além de termos uma ancestralidade comum bem estabelecida, vemos uma estrutura cerebral comum, de peixes a mamíferos, de répteis a aves, se repetindo sempre: cordão nervoso dorsal, tronco cerebral, telencéfalo, lobos do telencéfalo entre os quais se distribui o córtex cerebral. Repito: isso existe em peixes, mamíferos, répteis, aves (Fonte: qualquer livro de anatomia animal, como Romer & Parsons. Anatomia Comparada dos Vertebrados. Atheneu, 1985). Outros animais executam comportamentos tão complexos quanto os dos vertebrados, sem terem essa estrutura nervosa. Aranhas, por exemplo, têm uma capacidade notável de aprendizado.(Fonte: Nakamura & Yamashita. Learning and discrimination of colored papers in jumping spiders (Araneae, Salticidae). Journal of Comparative Physiology, 2000)
O que isso tem a ver com a mente humana? Podemos vislumbrar claramente uma emergência de qualidades mentais que hoje temos através de mecanismos evolutivos. Assim como peixes, temos um lobo olfatório que se liga diretamente aos tecidos onde acontece a recepção dos estímulos olfatórios. Nosso lobo olfatório se situa na mesma posição em que está nos peixes: anterior, ventral.
Assim como répteis, temos um tronco cerebral coordenando atividades vitais do nosso corpo, como respiração e modulação da frequência cardíaca. Também são notáveis as semelhanças entre os sonos dos animais, e aqueles que compartilham mais homologias conosco têm fases do sono parecidas com as nossas. (Fonte: Sidarta Ribeiro. Comunicação pessoal - palestra na Universidade de Brasília, 2008.)
Assim como o resto dos mamíferos, temos um telencéfalo bem desenvolvido. E assim como os outros primatas, temos áreas específicas do hemisfério cerebral esquerdo que se ativam quando executamos a comunicação. Pronto, chegamos a uma característica distintiva do ser humano, que é a comunicação pela linguagem, mais complexa que a comunicação por vários gritos diferentes em macacos como Cebus apella, que são capazes de coisas complexas como enganar e ocultar informação. (Fonte: Mitchel & Anderson. Pointing, Withholding Information, and Deception in Capuchin Monkeys (Cebus apella). Journal of Comparative Physiology, 1997.)
Como diriam os behavioristas na Psicologia, a parte mais cientificamente tratável da mente é o comportamento. E vemos o comportamento humano se alterar quando áreas cerebrais são lesionadas. Phineas Gage, um caso clássico, lesou seu lobo frontal e passou a agir imoralmente e passou a ser incapaz de fazer planejamentos a longo prazo. H.M., outro caso clássico, também lesionou o cérebro, e passou a ser incapaz de fixar memórias de longo prazo, retendo apenas as que tinha antes da lesão.(Fonte: Carl Sagan. Dragões do Éden.)
Não precisamos de muito mais que isso para perceber que a navalha de Occam respeita a afirmação de que o cérebro é responsável pela mente. É simplesmente a hipótese mais consistente. (Fonte: Kandel et al. (ed.) Principles of Neural Science)
Onde eu quis chegar com essa história? Que a mente humana dependeu de vários acontecimentos históricos contingentes, emergentes, para surgir: determinadas proteínas que delimitam canais de sódio e de potássio nos neurônios, pressões seletivas e corridas armamentistas entre animais que adquiriam comportamentos cada vez mais complexos, até atingir, cerca de 100 mil anos atrás, a sua forma moderna - de uma mente dotada de linguagem, planejamento, auto-consciência, intencionalidade de alto nível (graus de empatia e teoria da mente), sem contar nas bases sensoriais sobre as quais ela se apóia para crescer durante o desenvolvimento das crianças: habilidade manual, olhos que têm lentes (cuja história evolutiva é também bem compreendida), um corpo com órgãos de propriocepção, nocicepção, tato, etc. Tudo isso claramente acumulado durante bilhões de anos de um processo lento, intermitente, gradativo, cumulativo. Se há alguém que queira duvidar disso, e propor outras coisas envolvidas no surgimento da mente humana, o ônus da evidência cabe a essa pessoa.
Eu destaquei “contingente” porque é uma parte importante e pobremente compreendida até entre muitos entendedores de evolução.
Vou ilustrar com uma analogia o que quero dizer com contingente.
Imaginem uma panela contendo água fervente. Existem condições necessárias para fazer a água ferver: temperatura certa, pressão certa, e, é claro, água. Para dizermos que a água está em fervura, outra condição necessária é que ela esteja borbulhando. E uma condição necessária para que as bolhas surjam, é que haja no recipiente os chamados pontos de nucleação. Se observarem de perto uma fervura, perceberão que as bolhas de vapor surgem aproximadamente sempre no mesmo lugar. No ponto de nucleação, as moléculas de água, devido à sua energia cinética adquirida no aumento da temperatura, reorganizam suas interações moleculares, mudando o estado físico visível de líquido para vapor. (Fonte: qualquer livro de química do ensino médio.)
O que é contingente para a fervura da água? Aí falamos em casos particulares: uma única bolha que observamos surgindo, subindo e se mesclando ao ar, com dado volume e posição na panela, não é necessária para o que está acontecendo no sistema. Ela é um resultado contingente, ou seja, outra bolha poderia estar no lugar dela. Tanto quanto uma bolha em particular é contingente para a fervura da água, a mente humana é contingente para os processos históricos que geraram a vida terrestre.
Cogito ergo sum: penso, logo sou, diz Descartes. Isso significa que se há alguma convicção universal, é que temos mentes, que pensam, que duvidam. Atos de criação são igualmente conhecidos por nós em nosso mundo particular, porque mentes humanas criam.
Se somos capazes de criar, é porque nossa mente computacional é capaz de fazer previsões científicas sobre o trabalho possível de ser feito com nossas mãos sobre a matéria prima.
Se somos capazes de estabelecer teleologias, é por causa de nossa intencionalidade de alto nível, postura intencional, atribuição de estados mentais.
Como então, depois de tudo o que falei, mentes divinas podem ser conhecidas como responsáveis pela origem do universo? Quando o que conhecemos sobre mentes é praticamente isso aí? Não achamos sequer mentes que evoluíram em outros planetas ainda, que podemos nós dizer sobre mentes sintonizando constantes físicas para, com propósito, intenção, teleologia, CRIAR universos?
Uma dicotomia comumente proposta, de que a origem do universo ou é criação ou é acaso, é falsa, porque muitas outras hipóteses podemos conceber sobre as origens do universo. O argumento criacionista, ou do design inteligente, ou do desígnio divino (seja aplicado aos seres vivos, ou ao universo como um todo), é, como dizia Hume, infértil. Infértil por ser apenas uma hipótese num mar de hipóteses concebíveis. Infértil porque pouco parcimonioso (postula instâncias inacessíveis, mentes necessárias - ao contrário do que sabemos sobre a contingência das mentes no universo), por postular uma ou mais MENTES em lugares que NADA TÊM A VER com as circunstâncias em que nossa própria mente, que é a única que conhecemos, EVOLUIU.
Que diz Hume? (Fonte: David Hume. Dialogues Concerning Natural Religion.)
Hume dizia que o argumento do desígnio (hoje conhecido como argumento do design inteligente) é apenas uma analogia do mundo: escolhe-se algo humano, uma atividade humana, que é a criação, para aplicá-la ao mundo como um todo.
O problema que Hume percebeu é que, já que não temos nenhuma evidência que corrobore essa analogia em particular, outras analogias podem ser feitas, tornando-se equiprováveis a essa.
Esquecendo a probabilidade da existência dos deuses (que podemos tratar da mesma forma que tratamos a probabilidade de existência do Curupira, do Saci, das fadas e dos duendes), invertamos a questão: O QUE corrobora a existência dos deuses, afinal?
A veracidade de algo deve se apoiar sobre sua evidenciação positiva, e não sobre a incapacidade da crítica de eliminar toda e qualquer evidenciação.
Nós sabemos que existe um esquilo planador porque há evidenciação a favor dele, e não porque nossos métodos são incapazes de versar sobre a “veracidade” do esquilo, ou porque a crítica não pode “provar que não existe” um esquilo planador.
Quando Barbara McClintock propôs que existiam elementos de DNA que “saltam” de um lugar para outro no genoma, a crítica foi feroz, porém, a crítica nada poderia dizer sobre a veracidade ou inexistência desses elementos. Se hoje os aceitamos, não é porque a crítica foi incapaz de provar sua inexistência, e sim porque Barbara angariou evidências - ou seja, dados universalmente verificáveis - para apoiar a sua tese de que esses elementos existiam.
Isso deveria ser considerado lógica básica, compreender por que o ônus da evidenciação cabe a quem traz à tona a pergunta sobre existir alguma entidade.
Portanto, não é nenhum demérito que a ciência não consiga afirmar nada sobre a “veracidade” dos deuses. Se há motivos para duvidarmos da existência deles, é nada menos que a FALTA DE EVIDÊNCIAS, e, é claro, as incoerências e absurdos associados às suas definições propostas por aqueles que acreditam (como esperar que mentes sejam necessárias ao universo, o que seria análogo a acreditar que uma bolhinha em particular é necessária para a fervura da água).
Por que usar a Bíblia ajudaria a defender a existência de um ou mais deuses? Por acaso a Bíblia passou no próprio teste - de eliminar outras escrituras/relatos sagrados de outros povos por vias das evidências favoráveis a si mesma? Não, não passou. (E não me venham com monte Ararat, genealogias estapafúrdias e argumentos de desígnio, nada disso adiantou.) A Bíblia nem tem originais, é cheia de erros de tradução e até mesmo eventos que foram adicionados no texto muitos séculos depois do que se tem como data em que ocorreram. (Fonte: Bart D. Ehrman. Misquoting Jesus. [título da tradução: “O que Jesus disse? O que Jesus não disse?”])
Sobrevivem até hoje textos de Homero, falando em deuses diversos, e entidades sobrenaturais semi-divinas. Sobrevivem até hoje inscrições egípcias falando em deuses zooantropomórficos, que são tão boas em matéria de evidência quanto a Bíblia. Sobrevivem Vedas, Alcorão, relatos dos pajés ameríndios, listas extensas de deuses já adorados com sinceridade pelos mais diversos povos: www.godfinder.org (inclusive, El, identificado como o mesmo Javé, era outro deus em outros povos vizinhos dos povos em que surgiram as primeiras versões das escrituras bíblicas).
Portanto, dadas todas essas razões, tanto da absoluta discordância entre as religiões sobre a natureza dos deuses, quanto das melhores explicações que temos sobre as origens das complexidades a partir de coisas simples (como a mente a partir de neurônios, neurônios a partir de células não excitáveis, células não excitáveis a partir da ainda hoje observável organização espontânea das moléculas orgânicas) por processos contingentes, não há motivos racionais para se acreditar em deuses. Talvez haja motivos arracionais (independentes da razão), isso não discuto, inclusive, aceito como alternativa filosófica válida (que eu rejeito por ser desfuncional e não fazer previsões).
Atribuir mentes ao alicerce que sustenta o universo, ao ser necessário, ao maior do que o qual nada pode ser pensado, é também uma famosa figura de linguagem: prosopopéia. Assim como eu sei que quando eu digo que o vento lambe os cabelos de alguém, isso não significa que seja provável que o vento tem uma língua, não vejo diferença entre isso e dizer que a “base da realidade” ouve orações, compreende e observa nossas vidas, CRIA a vida e o universo, COMO SE TIVESSE UMA MENTE, quando a mente é tão nossa quanto a língua. Somos nós que lambemos, nós que criamos coisas, nós que ouvimos e entendemos o que outra pessoa quer expressar com palavras, nós que sentimos na pele os problemas dos outros, como se fossem nossos, e queremos ajudar a aliviar a dor e sofrimento dos outros. Nós. Nós fomos a régua inadequada e desajustada que foi usada ao longo da história para dizer que as coisas foram projetadas, ou que o vento lambe os cabelos, ou que alguém sintonizou as constantes do universo da mesma maneira que um velhinho sintoniza a AM para ouvir o futebol. Voltamos ao começo desse texto: nosso conhecimento é auto-referente, usamos o melhor que temos, a razão, os sentidos, algumas das nossas respostas se EVIDENCIAM, outras NÃO. Algumas são plenamente plausíveis, outras são cosmicamente improváveis.
O mestre taoísta Chuang Tzu, em seus diálogos com outros filósofos chineses, cita um enigma famoso por aquelas bandas: O enigma da Reforma e o Sábio. (Fonte: Arthur Waley. Zhuangzi: Basic Writings. Columbia University Press, 2003)
O enigma diz o seguinte: este mundo sem ordem só pode ser reformado (posto em ordem) por um sábio (shêng), mas enquanto o mundo estiver sem ordem, nenhum sábio poderá aparecer.
Solucionamos o enigma da Reforma e o Sábio? Creio que sim: o sábio (mente) é um resultado contingente de processos naturais que promovem a ordem no mundo sem ordem. Somente quando a ordem aparece, os sábios aparecem. O que implica que o sábio não é necessário para promover a ordem que o antecede.
De qualquer forma, os filósofos chineses mostram, com esse enigma, seu espírito de livre investigação, que não os obrigou a pararem em postulados frouxos como aconteceu com a escolástica aristotélica-platônica-aquiniana do ocidente.
Afinal, o Tao não precisa de mente. O Tao é simplesmente a base de tudo, ele é para o universo o que a água é para um peixe. Então as crenças religiosas dos taoístas são muito mais compatíveis com a ciência do que o Cristianismo.
Chuang Tzu observou a água de cima de uma ponte sobre o rio Hao, e disse para Hui Tzu: “Veja como os peixinhos nadam como querem pra cá e pra lá. Tal é o prazer que os peixes desfrutam.”
Hui Tzu respondeu: “Você não é um peixe. Como sabe o que dá prazer aos peixes?”
Eu respondo hoje para Hui Tzu: eu sei disso, porque no fundo sou um peixe que mudou. ***
Matsiendra
(Veja também: “Elogio ao Hinduísmo”)