Notas de um paparicado crítico: a tensão entre questionamento e cortesia profissional
Reflexões sobre o jornalismo científico e outros ambientes que podem se beneficiar de mais racionalidade com bom humor
Em algum momento do passado, em algum lugar do Brasil — a vagueza é proposital — uma farmacêutica convidou a mim e a outros jornalistas que cobrem ciência e saúde para um evento. Nós estávamos lá para ouvir especialistas selecionados pela empresa e, se quiséssemos, escrever sobre o assunto de suas palestras e entrevistá-los.
O evento foi de uma organização invejável. Fomos muito paparicados, e eu fazia questão de sempre comentar isso para os organizadores. A atenção que recebemos foi total, as ótimas funcionárias da farmacêutica até organizaram listas de entrevistas, e sugeriam entrevistados que tivessem a ver com o perfil de cada jornalista. Ao menos comigo foi assim. O local do evento era nada menos que luxuoso.
A primeira coisa que um jornalista paparicado deve ter em mente, penso eu, é quais grupos poderiam dizer algo diferente sobre as pautas tratadas nesse tipo de evento, mas não dispõem dos recursos para paparicá-lo e seduzi-lo a cobrir de uma forma atrativa para eles. Esses grupos, se existem, devem ser o primeiro contraponto a ser pensado em possíveis reportagens.
Não reclamo do bom tratamento, no entanto. Sou grato e fico lisonjeado. Já apontei que as farmacêuticas são gigantes complexos, inclusive moralmente falando: os exemplos de erros/crimes até fatais no passado são bem conhecidos, mas devem ser sopesados com os benefícios, que não são poucos. Virou um clichê da pandemia, e um clichê batido e insincero, mas é verdade que elas salvam vidas. E devem salvar mais do que ceifam com efeitos colaterais e pesquisas desastradas. Se não fosse assim, a posição delas tão firme e lucrativa no mercado seria inexplicável.
Mas…
Outro clichê da nossa era de arranca-rabo e bate-boca (às vezes arranca-boca e bate-rabo) é a alegação de que a conjunção adversativa “mas” nega tudo o que vem antes. Isso é uma óbvia besteira. O uso patológico pode até ser comum, mas não é para isso que “mas, porém, contudo, todavia, entretanto” (como enumerava o Professor Giraffales) existem. “Eu gosto de você, mas você é muito chato” serve para corrigir o amigo chato, não para desfazer a amizade, geralmente.
Gostei de ser paparicado pela farmacêutica e a parte mais importante disso foi me colocar em contato com os especialistas e colegas do jornalismo científico. Mas! Porém! Contudo! Todavia! Entretanto!, eu suspeito que a gratidão dos colegas pelo paparico pode ter interferido em sua inclinação de fazer perguntas espinhosas. Porque eu ouvi poucas.
É só uma suspeita minha, não tenho “provas” a apresentar. Definitivamente, não ouvi todas as perguntas feitas, e posso estar bem errado. E minha suspeita pode ser arrogância, pois claro que penso que fiz perguntas espinhosas só onde elas cabiam e eram necessárias. O risco da minha atitude é ser aquele tipo de entrevistador adversarial, que não ouve e interrompe o entrevistado — em suma, o desrespeita. Sou um recém-chegado do jornalismo, longe de mim pegar o bonde andando e querer ditar as regras.
Bom-mocismo é inimigo da crítica, humor pode ajudar
Feitas as ressalvas para ninguém chegar aqui na inocência, ainda tenho o total direito de agir como advogado de mim mesmo, tentando exemplificar que as perguntas capciosas eram necessárias. Uma foi direcionada a um palestrante que falou da tal “hesitação vacinal” da pandemia. Eu elogiei a palestra, mas usei humor para quebrar o gelo da pergunta mais difícil que viria em seguida.
Eu disse “ótima palestra, o senhor tem razão quanto às pessoas reagirem mais a exemplos que contam uma história do que à frieza dos dados, mas eu não estaria fazendo meu trabalho se não fizesse uma pequena provocação ao senhor”. A observação bem-humorada (chamar de “piada” seria exagero) teve algum efeito na plateia e no palco. E aí eu detalhei os pontos (as citações são todas de memória, com paráfrase didática e floreios mínimos para realçar meus pontos):
“É verdade que a ignorância é uma das grandes causas da hesitação vacinal, mas outra causa foi a comunicação defeituosa das autoridades. As vacinas de mRNA utilizavam uma tecnologia nova, diferente das vacinas clássicas. As dúvidas a respeito desse método novo não foram passadas com clareza. Quando novas informações levaram à mudança da mensagem, era tarde demais e a retaliação de desconfiança atingiu as vacinas de um modo geral, não apenas as que eram novas, das quais se espera mais incerteza quanto à segurança e eficácia. Além disso, quando o Reino Unido descontinuou a recomendação da vacina AstraZeneca (que não é de mRNA) para menores de 40 anos, devido ao risco de coágulos, o Brasil levou 600 dias a mais para segui-los nisso, período no qual brasileiros jovens como Bruno Graf morreram por trombose vacinal com trombocitopenia — caso que compreensivelmente chama muito a atenção. O senhor não acha que as autoridades partilham de responsabilidade pela hesitação vacinal, por causa de decisões como essa?”
Os floreios realmente são mínimos, eu cobri o assunto o suficiente para me lembrar do termo “trombose com trombocitopenia”. A resposta do palestrante foi no sentido de reafirmar que em nenhuma vacina ou medicamento o número de afetados com efeitos colaterais é zero. Até onde me lembro, ele não tocou muito na questão da responsabilidade das autoridades pela (má) comunicação.
A outra pergunta que eu fiz foi sem plateia (o que é melhor, pois a plateia é fator intimidador de respostas mais calculadas, longas e detalhadas), para um executivo importante da farmacêutica. Essa eu não vou detalhar muito, para reforçar a anonimidade que eu apliquei para realçar nosso tema geral, aqui. Essencialmente, apontei uma contribuição da empresa para a pandemia que não deu tão certo assim, e perguntei sobre riscos dessa contribuição que foram sugeridos pela cobertura na época. Ele minimizou os riscos. Quando perguntei se pesquisas específicas tinham demonstrado o que ele dizia, ele foi um pouco vago. Em defesa dele, pode ser que ele tenha interpretado mal de que tipo de risco eu estava falando — não um risco aos pacientes em si, mas um risco mais geral.
Eu ouvi outras perguntas feitas pelos colegas ao executivo. Não tocavam muito na pandemia, não chegavam perto desse assunto (talvez não soubessem ou não se lembrassem do assunto em que eu toquei). Por quê?
Mais uma vez, tenho algumas suspeitas. Eu não acho que os colegas conscientemente evitam perguntas difíceis porque foram paparicados. Acho que o problema, se é mesmo um problema, é mais geral, é um problema de bom-mocismo, de viés de desejabilidade social. Ser crítico facilmente pode ser confundido com ser mal educado. Às vezes a confusão é fingida, é feita pelo criticado justamente para afastar a crítica. O mais comum, no entanto, é que quem é mais propenso a fazer a crítica é gente que tem um nível mais baixo de agradabilidade, um dos cinco principais ingredientes da personalidade.
Pessoas pouco agradáveis podem nem receber o convite para estar em situação de apresentar a crítica. Daí a importância da leveza, do bom humor. Brincar é uma forma universal entre os mamíferos de sinalizar socialmente que ninguém está ali para morder de verdade, machucar pra valer. Se nosso interesse é na busca social da verdade, com uma cultura receptiva a ela com verrugas e tudo, e em mais pessoas donas de si que reconhecem quando erram, essa leveza é salutar, porque as pessoas perdem parte do medo de errar e podem tentar mais e melhorar.
“Mas Eli!”, ouço meu modelo mental dos mais radicais gritando na minha cabeça, “essa gente faz coisas sérias, brinca com vidas, você ser leve com elas é praticamente ser cúmplice”. Respondo. Primeiro, trazer leveza com um pouco de bom humor não é de forma nenhuma tirar o peso real dos problemas sendo discutidos. O caso é que, se não apresentarmos a crítica, na forma de pergunta ou afirmação, com um mínimo de acolchoamento, estamos fazendo o papel de advogado de acusação, não de parte interessada no assunto querendo ver mais verdade e mais responsabilidade espontânea e voluntária.
O trabalho do advogado de acusação é muito mais difícil que o meu. Não apenas ele tem que achar um erro, como, se for o caso em que acusa dolo, precisa provar que houve intenção de ferir. O meu trabalho é ajudar o público a entender o conteúdo da pesquisa científica e as polêmicas em torno dele. No meu primeiríssimo texto sobre vacinas da Covid, eu disse explicitamente que responsabilidade de pessoas jurídicas grandes como as farmacêuticas é algo bastante complexo. Quando há crime, o conjunto de pessoas que tiveram dolo é sempre inferior ao conjunto das que fizeram vista grossa ou foram negligentes, ou só confiaram na autoridade da palavra do outro, e ao número das que nem sabiam do problema ou até da natureza da pesquisa (o número de estudos diferentes tocados por uma farmacêutica moderna assegura que alguns nem saibam do que outros fazem lá dentro).
Meu trabalho é apontar os 600 dias de atraso das autoridades em seguir o que outras, de um país que geralmente acerta mais, fizeram. Se isso vai ligar o radar de gente cujo trabalho é encontrar os indivíduos responsáveis e levá-los à Justiça, se for o caso de levar, é algo que está geralmente além do meu alcance. Presumindo que fosse esse o caminho das coisas, e a Justiça entendesse que houve algo punível previsto pela lei, o processo completo seria mais improvável se lá no começo eu estivesse com medo de ofender os que tomaram a decisão porque quero ser visto como boa pessoa ou como alguém ciente das regras de etiqueta.
A Câmara Municipal onde todos votam “sim”
Outro lugar em que observei o que considerei falta de crítica, mas dessa vez com elementos mais objetivos, foi a Câmara Municipal da cidadezinha em que cresci, Lagamar. Em uma rara visita minha para observar algum assunto em que minha mãe estava envolvida (ela é bastante presente no setor de cultura), vi que toda pauta apresentada nas sessões tinha votação unânime favorável.
Sério que nenhum dos vereadores conseguia ver desperdício de dinheiro de imposto aqui, falta de necessidade ali? De onde vem essa unanimidade toda? Dos maravilhosos e elonquentíssimos argumentos apresentados por cada relator de projeto de lei municipal? Eu sou de lá, e não me lembro dessa eloquência toda. Hipótese melhor é que o ambiente acrítico dominado pelo bom-mocismo garantia unanimidade sempre, pelo menos quando eu fiz a visita há mais de cinco anos.
As sessões quinzenais são transmitidas pela rádio municipal. Os lagamarenses poderiam apreciar bons argumentos para um lado ou outro. A realidade é que mal há argumento, que dirá bons. As crenças são presumidas, raramente desafiadas.
Mas isso contrasta de uma forma curiosa com a retórica inflamada de quatro em quatro anos, em tempo de eleição. Quando a discordância finalmente aparece, ela é explosiva, tribal, sem leveza, sem acolchoamento. Ela é crua, “pobre, sórdida, embrutecida e curta”, como disse Thomas Hobbes sobre a vida antes do surgimento do Estado. Às vezes essa discordância mal-humorada pipoca fora de tempos de eleição e causa um impeachment. Se, para concordar, o debate já é manco, como ele é para discordar? É daquele jeito.
Razão como escolha cultural
Um dos livros que mais gosto dos que eu li na última década é Enlightenment 2.0, do filósofo canadense Joseph Heath. O livro é dedicado a responder às várias formas de ceticismo contra o projeto do esclarecimento/Iluminismo. No primeiro capítulo, Heath define o que é razão, aproveitando pesquisas da ciência cognitiva a respeito. Nos capítulos seguintes, ele trata das várias formas pelas quais o uso da razão sofre reveses. Mas ele defende algo interessante: podemos criar comunidades mais racionais pela adoção de regras de rigor intelectual como normas sociais. Também defende que podemos ser mais racionais em conjunto do que individualmente. Para isso ser possível, como certamente é a tentativa na comunidade científica, precisamos observar coisas como as que observei aqui: as formas pelas quais tendências como viés da desejabilidade social afetam a recepção a críticas, e a qualidade delas. Entender os cacoetes da nossa espécie, e nossos próprios vieses como indivíduos, é um passo salutar nessa direção. Acho que para pensarmos juntos devemos estar dispostos a rir juntos e até a brigar juntos, se respeitarmos as Convenções de Genebra do debate e estivermos dispostos a reatar e perdoar. No jornalismo, na câmara municipal, ou nos blogs. É utopia? Tomara que não.