Moralidade religiosa é para crianças e animais
Este texto é uma complementação à minha publicação anterior em conjunto com meu amigo Júnior Camilo.
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Primeiro, vou argumentar por que penso que a moral religiosa é para crianças.
Para Jean Piaget, existem duas fases de desenvolvimento moral na criança. Em crianças mais novas, a moral é de puro respeito ao tabu. De observar regras impostas e sagradas, ditadas pelos adultos responsáveis.
À medida que a criança vai crescendo, desenvolve-se uma nova moral por causa da convivência com outras crianças: é a moral de justificação. A criança precisa agir de tal forma que não seja excluída pelas outras. Por isso, a criança passa a agir com base na Reciprocidade. Essa moral de reciprocidade, em que a criança age autonomamente, se parece com o Utilitarismo de John Stuart Mill: se não ponderar o peso de suas ações quanto a gerar dor e prazer no grupo de amiguinhos, pode terminar sendo excluída.
Em suma, a moral religiosa se parece com aquela da criança pequena, que ainda não tem cognição desenvolvida para agir por conta própria, por isso confia cegamente nas leis morais ditadas pelos pais.
Para entender por que a moral religiosa é para outros animais que não o homem, teremos de entender primeiro por que a moral religiosa não visa à felicidade. Afinal de contas, não é uma preocupação de um criador de gado de corte que cada vaca esteja feliz. Basta que a vaca exista, seja dócil e obediente, até que seja fácil de abater.
Desvincular ética e felicidade é um dos maiores crimes já cometidos por alguns sistemas de crença que se perpetuam através da doutrinação infantil. Como exemplo óbvio, podem ser citadas as religiões abraâmicas.
Ao proporem uma moral (um conjunto unilateral de regras éticas), essas religiões, e alguma instância social maior que as abrigue, parecem ter tido objetivos a atingir: garantir a agregação social, garantir a obediência a um poder central (intermediário direto de Deus, ou coligado a intermediários dessa natureza), e garantir a fé como inquestionável - o que é essencial para a integridade dessas instituições.
Essas religiões não tinham em momento algum como objetivo garantir a maior felicidade, o que é expresso até mesmo no Sermão da Montanha. Esses objetivos são adaptativos: garantem sobrevivência e reprodução tanto para as idéias quanto para as pessoas associadas a essa moral.
Essa moral religiosa foi racionalizada por filósofos eminentes, como Immanuel Kant e seu Imperativo Categórico - agir de tal forma, pela 'boa vontade', que sua ação possa ser tornada uma lei universal. Ou seja, agir por dever.
Agir de uma forma e não de outra por obrigação, por Imperativo Categórico, e recomendá-lo como a única Moral possível, é corroborar um sentimento de obrigação que denota medo de punição ou interesse egoísta por recompensa. Não há nada de racional no Imperativo Categórico: ele é, em seu âmago, nada menos que uma experiência cósmica de um grande Pavlov imaginário para domar instintos humanos. O interesse teísta do Imperativo Categórico é administrado sob o nome de "boa vontade". É interessante que Kant use a palavra vontade, pois de fato um escravo que é espancado não tem vontade de voltar a ser espancado, e uma pessoa egoísta tem vontade de ser recompensada por agir "bem", e das vontades a que tem mais poder é a do experimentador, Deus.
Aldous Huxley descreve uma sociedade futura em que humanos seriam condicionados desde a fase embrionária para executarem tarefas pré-estabelecidas pelos detentores do poder. Os regimes de condicionamento se dariam de diferentes formas para diferentes castas. Esta abominável sociedade do futuro do livro "Admirável Mundo Novo" já foi descrita como uma sociedade "da ciência".
Entretanto, o condicionamento moral, por reforçamentos de punição ou recompensa, se identifica muito mais com pensamentos religiosos cujos adeptos somam bilhões no mundo de hoje: cristãos, muçulmanos, judeus, hindus, espíritas, entre outros. O Abominável Mundo Moderno está aqui. Ele não dispõe de maquinário complicado para a criação em massa de bebês (como imaginado por Huxley), mas dispõe de recursos humanos extensos para a doutrinação de crianças. Ele não dispõe de tecnologia para dar choques em bebês que se interessem por livros, mas dispõe de uma massa de mentes adultas que sentem um choque de culpa ao primeiro pensamento impuro de questionamento dos dogmas de fé.
Essa moral rasa é pouco humana: convence-se muito facilmente vários tipos de animais, de camundongos a invertebrados, a agir de certa forma por temer punição ou por ter expectativa de ganhar uma recompensa. Essa moral é apelativa às partes reptilianas de nossa mente, os centros mais internos do telencéfalo, relacionados ao prazer e à dor. Condiciona-se um gambá, cuja capacidade de antecipar o futuro é limitada, dando a ele algo que agrade o paladar. Condiciona-se um crédulo através de uma promessa reconfortante, pois a mente dele, diferente da do gambá, calcula o futuro com assombro.
É no mínimo muito irônico que justamente o cristianismo, cujos mais brilhantes pensadores teciam análises taxativas quanto ao instinto estúpido dos animais comparado à brilhante razão humana, estimulou historicamente uma moral de condicionamento.
A moral por dever (teísta) é um Behaviorismo anacrônico, pois usa para seus fins técnicas como aquelas usadas por Pavlov, Skinner, e outros. Esses condicionamentos morais se dão por reforços positivos (promessas de uma grande recompensa contanto que o indivíduo se comporte da forma desejada) e por reforços negativos (ameaças de punição e ostracismo). Os princípios de que depende são processos mentais primitivos, muitos dos quais se identificam com o que se chama de "instinto".
Aí está a razão pela qual a moral religiosa (particularmente a ocidental) se identifica com os outros animais.
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Para um aprofundamento do tema e propostas de éticas diferentes da religiosa, bem como hipóteses de surgimento da moralidade humana, ver "Das questões morais" (parte 2 segundo o blog de Júnior Camilo, pois ele escreveu uma primeira parte sobre a moralidade na Bíblia).