Manifesto Isentão
Aqui estamos, divididos em tribos políticas em perene disputa. A disputa não é de se estranhar: as vagas para o poder e o uso de recursos são limitadas. O que é de se estranhar são as tribos.
Talvez "tribo" não é o termo mais adequado, pois as tribos são agrupamentos geralmente pequenos e baseados na capacidade do indivíduo de formar uma rede de cerca de 150 contatos contínuos e estáveis em sua memória. Em contraste, as tribos políticas costumam ser bem maiores e mais complexas, envolvendo milhares, às vezes milhões de membros. Sua aliança é mais informal que formal, feita mais de declarações públicas de crença do que de contratos e carteirinhas. Com o perdão da escolha imperfeita de termos, falemos um pouco mais das tribos políticas.
Como apontaram pensadores, as crenças compartilhadas das tribos políticas não têm nexo lógico entre si. O que quer dizer que elas não são realmente, como pensam outros, organizadas em torno de crenças fundamentais das quais as outras crenças são deduzidas, nem mesmo em torno de um cerne de "valores". Com o passar do tempo, os tais valores fundamentais podem até se inverter dentro de uma tribo política.
Essas afirmações podem parecer radicais. Mas, para testar se são verdadeiras, tomemos uma das definições mais populares que buscam enraizar tribos políticas em crenças ou valores fundamentais: Norberto Bobbio propôs, por exemplo, que a esquerda se organizaria em torno de uma preocupação com a igualdade, enquanto a direita se organizaria em torno de uma preocupação maior com a liberdade. Se isso é verdade, por que a esquerda está envolvida na criação de programas de "ação afirmativa" que desenfatizam a igualdade perante a lei (cotas raciais nas universidades, cotas de gênero nos partidos; e leis que, em vez de seguir a tradição de tipificar imparcialmente a conduta, mencionam "pelo nome" quem a faz e quem é o alvo), enquanto a direita está envolvida em restringir liberdades como o uso de drogas recreativas tão danosas quanto o álcool ou o tabaco?
Houve experimentos sociais que também provam essas contradições: o socialismo que vem para abolir diferenças entre classes, e termina por criar uma estratificação entre membros do partido mais funcionários públicos e o resto da população empobrecida. A defesa da família, tradição, propriedade e caridade privada em vez de programas de assistência estatais, que decide arbitrariamente que não é família se for chefiada por duas pessoas do mesmo sexo, não é tradição se afrontar seus brios religiosos, não é propriedade se pertencer à igreja (originando isenções de impostos) e não é caridade, mas abuso infantil, se quem adotar a criança for homossexual.
As tribos políticas são muito boas em apontar a hipocrisia umas das outras, enquanto ignoram a sua própria. A hipocrisia é tão comum que é quase um aspecto definidor das tribos políticas. E há pessoas que fazem carreiras como comentaristas políticos nessa atividade fácil de achar a próxima hipocrisia na tribo política do outro. Há hipocrisia porque as tribos não são, como já discutido, racionais.
As tribos políticas são reais e nós podemos, com alguma frequência, classificar algumas pessoas como membros de uma ou outra, especialmente quando estão dispostas a declarar lealdade a uma ou outra. O que não é real é que as tribos políticas sejam fruto de deliberações racionais, em vez de instintos "de manada" e irracionalidades. Desse modo, elas devem ser abandonadas.
Disso não se conclui que a saída é a apatia política. Há dados empíricos de que o engajamento político é inversamente proporcional à deliberação racional sobre problemas políticos: os mais engajados são justamente os mais fanáticos. São esses fanáticos que, talvez para pavonear virtudes que não têm e parecerem menos fanáticos do que de fato são, desejam que todas as pessoas sejam classificáveis em alguma tribo política fácil de "entender" e estereotipar de um modo que seja um insulto à tribo alheia e um elogio à tribo própria. O excessivo engajamento dos fanáticos leais às suas tribos serve como motivo para os mais racionais (e portanto mais apartados das tribos) se engajarem. E, quando isso acontece, fanáticos de todas as tribos políticas atacam o engajamento que não é leal a nenhuma delas, como é exemplificado pelo surgimento do xingamento "isentão". Daí este "manifesto isentão", intitulado ironicamente, mas sincero em chamar pelo maior engajamento dos isentões.
Talvez mereça mesmo uma alcunha pejorativa quem quer se fingir de isentão enquanto se encaixa perfeitamente, em suas ações e expressões, em alguma tribo política. Queremos, para contrabalançar a irracionalidade política, que quem é genuinamente isentão se engaje. Rascunhemos no que consiste a atitude isentona genuína, que demanda trabalho e não é para preguiçosos:
Gaste menos tempo tentando decifrar a que tribo política pertence uma opinião, e mais tempo julgando a opinião por seus méritos. Pode parecer contra-intuitivo ignorar as tribos dessa forma, mas na verdade essa é a parte mais importante, e que envolve o maior volume de trabalho. Nem sempre será fácil avaliar os méritos da opinião: pode ser que os dados sejam insuficientes, ou que você precise achar algum filósofo obscuro que tratou com rigor do assunto e pouca gente conhece. Familiarizar-se com filosofia (a filosofia rigorosa, não a oracular que se deixa confundir com literatura ou historiografia), aqui, é salutar.
Declare ignorância quando há evidências insuficientes para concluir por um lado ou por outro. Mas aplique o mesmo padrão de exigência para todas as opiniões: às vezes você saberá de pronto a origem tribal de uma opinião, e, caso tenha sido simpático a essa tribo política no passado, poderá ter o viés de exigir menos dela. E, se foi ou ainda é especialmente hostil a essa tribo, poderá exagerar nas suas exigências de evidências e bons argumentos.
Engaje-se politicamente. Será muito difícil declarar lealdade a algum partido, dada a tendência de todos os partidos de formarem tribos políticas. Mas o engajamento isentão é aquele baseado em propostas: "esta proposta é melhor, e eis o porquê". O apoio a candidatos a cargos eletivos deve ser totalmente baseado no compromisso desses candidatos com essas propostas. O fato de dar razões para suas escolhas, em vez de baseá-las em apelos à autoridade, apelos à maioria, apelos às boas intenções e pavoneamentos de virtudes, já servirá para lhe caracterizar como isentão. Mas, cuidado: existem razões postiças baseadas em vieses diversos que a nossa mente tem de fábrica. Leia este livro, por exemplo, para melhor entendê-los.
Ser isentão não é ser perfeito, destituído de erros. Reconhecer a própria falibilidade, inclusive, é uma das virtudes isentonas. A atitude isentona deverá formar um mosaico de crenças que é só seu, baseado nas informações que você obteve, formando um espectro de convicção -- da alta dúvida à alta certeza -- de acordo com quantas evidências e bons argumentos você tem relacionado a cada uma dessas crenças, não de acordo com os ganhos sociais que você terá se declarar a sua fé em uma ou outra crença para agrado de alguma tribo política. Em outras palavras, quanto mais inclassificável politicamente você for, melhor estará como isentão.
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P.S.: Neste "manifesto" foram citadas apenas as grandes tribos políticas "direita" e "esquerda". Mas não é nem de longe, como insinuado, uma lista exaustiva das tribos. Grupos que começam com reais princípios e valores, e dedução de crenças com base neles, podem logo degenerar em tribos políticas. Um sinal dessa degenerescência é que os princípios e valores escolhidos de partida eram parciais, escolhidos a dedo de um universo em que há outros tão importantes quanto esses. Outro sinal é a proliferação de termos rotulantes para identidade política. "Eu sou não-sei-o-quê-ista com tendências fulanistas e uma pitada de qualquercoisismo" não é algo que tipicamente sairia da boca de um isentão. Termos rotulantes da identidade são um sintoma de tribalismo político.
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