Ética do bife: "porque é gostoso" não é resposta (ou: Parte 2 da resposta a mim mesmo quando ataquei o vegetarianismo)
Todos os dias, acordamos e começamos uma rotina de ações, como escovar os dentes. Escovamos nossos dentes porque sabemos que é a forma de evitar problemas como mau hálito, sorriso feio e coisas mais graves. Por estética ou por saúde, temos este hábito pelo nosso próprio bem-estar. Talvez nem saibamos todos os problemas que teremos se não escovarmos os dentes, e talvez até tenhamos uma ideia exagerada dos problemas que de fato aparecerão se falharmos em fazê-lo por um dia. Confiamos em quem nos ensinou que escovar os dentes assegura nosso bem-estar, mesmo que no princípio fosse desagradável. Temos até pastas de dente mais saborosas para convencer as crianças a tomar este hábito, tal é a importância que se atribui a escovar os dentes. E é uma importância justificada pelo que se sabe a respeito do hábito.
Alguém, talvez uma pessoa indígena, poderia perguntar se escovar os dentes é moralmente correto, se é ético, se é fazer o bem. Ou se é imoral, se é antiético, incorreto, indesejável, se é fazer o mal. Porém, a pergunta pode esconder uma terceira via: talvez eu acordar de manhã e escovar meus dentes no dia 2 de novembro de 2014 seja coisa moralmente neutra, inócua, inconsequente! Enquanto é certo uma pessoa escovar seus dentes todos os dias, no sentido de preservar seu próprio bem-estar e não desenvolver por imprudência problemas bucais que afetarão o orçamento da saúde pública, não escovar os dentes especificamente no dia 2 de novembro não parece ser coisa que afete a sua própria vida ou a vida de outrem. Há ações moralmente neutras, que não são certas nem erradas.
No começo dos anos 1990, após um estudo com camundongos, espalhou-se um pânico de que flúor na água e na pasta de dente poderia causar câncer nos ossos. Até hoje, a maior parte dos estudos tendem a concluir que essa suspeita é injustificada e que o flúor não tem essa propriedade. Supondo que fosse verdade, quem soubesse disso e continuasse recomendando a escovação dos dentes estaria agindo errado. Nosso julgamento sobre a moralidade de escovar os dentes pode, portanto, mudar de acordo com conhecimentos novos a respeito do hábito.
Se um hábito tão corriqueiro quanto escovar os dentes está sujeito a ser reanalisado de acordo com novas informações, que diremos de hábitos como comprar e comer um bife?
Devemos ter, portanto, justificações morais onde forem necessárias. E, se uma ação ou hábito é moralmente neutro – se “não prejudica a ninguém”, como se diz popularmente, é preciso explicitar também os motivos pelos quais acreditamos nessa neutralidade. Note que estamos falando aqui de fazer a coisa certa ou a coisa errada, no sentido ético de certo e errado, e não de leis. Embora leis devam preferencialmente se basear no que é moralmente certo ou errado, nem tudo o que é incorreto deve ser ilegal – imagine se aplicássemos uma lei punitiva para cada vez que alguém se sente ofendido? Seria o fim da liberdade de expressão.
Existem respostas que não funcionam quando se põe em dúvida se uma ação é certa, que dão motivos que não justificam agir de certa forma nem mostram que a ação em questão é neutra. O tribunal de Nuremberg, por exemplo, que julgou crimes nazistas, não considerou por exemplo que “eu estava seguindo ordens” fosse motivo que justificasse que os membros do baixo escalão Nazi matassem e queimassem as pessoas presas em campo de concentração. Era um motivo que não isentava de responsabilidade esses funcionários do regime nazista. Manter em confinamento e matar pessoas por serem de origem judaica com certeza não é ação moralmente neutra ou ação que seja aliviada pela hierarquia relativa entre os agentes. Analogamente, dizer “porque eu estava com pressa” pode até ajudar a autoridade de trânsito a entender por que você estacionou na faixa de pedestres, mas não justifica sua atitude nem te isenta da multa. Porque estacionar na faixa não é moralmente neutro: pode aumentar o risco para os pedestres que desejam atravessar a rua, pode tirar de uma ambulância a oportunidade de aliviar o sofrimento de alguém atropelado, etc.
O hábito de comer carne dificilmente pode ser visto como completamente neutro. Talvez dizer “porque é gostoso” funcione como motivo para comer outros tipos de alimento. Mas não funciona para um bife. Primeiramente, porque o bife pode ser resultado da tortura de um animal (nem sempre é, mas pode ser). Tudo o que precisamos saber para concluir isso é se vacas sentem dor como humanos sentem. Se é errado causar dor desnecessariamente a um ser capaz de senti-la, não interessa se o ser em questão é uma pessoa ou não. Alguém poderia dizer que o problema com a tortura não é apenas infligir dor, mas infligir dor a um ser consciente. Como no caso da hipótese do flúor como tratamento odontológico, nos vemos numa dúvida que depende de pesquisa empírica: é verdade que vacas são seres conscientes? Se formos ouvir especialistas que trabalham com cérebros, que são as mais prováveis coisas no mundo responsáveis pela consciência, a resposta é sim. Vide a Declaração de Cambridge sobre a Consciência (http://fcmconference.org/img/CambridgeDeclarationOnConsciousness.pdf ).
Mas nem todo bife vem de vaca torturada. “Porque a vaca não sofreu”, então, seria resposta melhor que “porque é gostoso”? Sim, mas talvez não seja suficiente: se estamos falando de um ser consciente, e você como ser consciente sabe que não seria correto alguém numa ocasião banal simplesmente tirar sua vida para, digamos, doar seus órgãos, usando como desculpa que você não sentiu dor na execução, então deveria considerar que, tanto quanto você, vacas podem ter genuíno *interesse em viver*. Se você tem interesse em viver para perseguir uma carreira, o conhecimento, o prazer, vacas também podem ter interesse em viver para fazer suas coisas de vaca. Novamente, não interessa a espécie: interessa se existe interesse em viver.
Se a espécie alvo de uma ação não importa para os critérios pelos quais julgamos moralmente uma ação, isso não parece ser verdade para as prioridades. Quando é preciso escolher entre a vida de um ser humano e a vida de uma vaca, o primeiro tem prioridade em função de suas capacidades de sofrimento e interesses. É por isso que os inuits (“esquimós”) que não têm escolha a não ser matar e comer animais, sendo a alternativa sofrimento e morte humanos, estão plenamente justificados em sua carnivoria. Se não podem fazer diferente, não devem. O dever moral de fazer algo vem sempre acompanhado de ter a capacidade de fazê-lo. Quem não pode não deve.
Mas hoje, no Brasil, há poucos que podem alegar que não podem. Se podemos ao menos nos perguntar se a carne que consumimos foi produzida com tortura, devemos. Quem decide que a carne que consome deve ser produzida sem dor está fazendo a coisa certa. Se algum tipo de carne que consumimos veio da interferência no interesse de viver de um ser consciente, está fazendo a coisa certa quem decide encerrar o consumo e procurar alternativa.
“Porque é gostoso” não responde a nada disso, e muito menos estabelece que é moralmente neutro comer o que é gostoso. Um canibal poderia responder o mesmo sobre comer carne humana, nem por isso o canibalismo estaria isento da necessidade de se justificar. Nem mesmo para um prato de salada “porque é gostoso” funciona na justificação, pois o que demonstra a neutralidade moral de comer o pé de alface são as propriedades da planta e as consequências de produzi-la, não seu sabor.
Se essa resposta não resolve nada, talvez seja uma tentativa de usar o humor para silenciar a própria razão de considerar o problema. O humor, para o bem e para o mal, tem o efeito de apaziguamento mental – e a dúvida sobre a moralidade do que se faz rotineiramente traz um desconforto mental.
É uma atitude anti-intelectual, portanto, se esconder por trás de respostas preguiçosas como “porque é gostoso”. Uma atitude que em si é moralmente ambígua, pois foi usada no passado para tentar “justificar” atitudes de inócuas a gravemente danosas como a escravidão. No passado, pouca gente sabia que escravizar era errado, hoje não sobrou país que explicitamente permita a escravidão em suas leis. No passado, expulsar homossexuais de casa e tentar obrigá-los a mudar de orientação sexual era considerado correto, hoje, cada vez menos pessoas concordam com isso. A próxima fronteira no lento avanço da humanidade em coisas que podemos e devemos fazer diferente será, provavelmente, em direitos de animais não-humanos. Seu principal impedimento não será o sabor do bacon, mas a ignorância voluntária. Mesmo que comer bacon especificamente no dia 20 de julho de 2015 seja uma ação moralmente neutra.