Escola Sem Partido: o bom, o mau e o feio
Professores têm liberdade de expressão? Como indivíduos, sem dúvida. Nessa era em que há cada vez mais pressão para remover todo tipo de opinião desconfortável nos meios que mais expandiram a expressão nas últimas décadas, é importante reconhecer isso. Um professor pode ir ao Twitter chamar pela união dos "proletários" contra a "burguesia", ou ao Facebook para comemorar a "revolução" de 1964 a cada 31 de março, enquanto essas redes permitirem, é claro. E parece que essas redes, por pressão censora do público e dos anunciantes, estão propensas a permitir cada vez menos. Acho esse desenvolvimento lamentável, pois essas redes, apesar de serem empresas privadas e assim poderem implantar regras próprias, perdem a oportunidade de ser uma praça pública internacional para a plena liberdade de se expressar, que só faz sentido se incluir a expressão de algumas coisas que ofendem e incomodam. Sem anunciantes e usuários que realmente acreditem na liberdade de expressão, a arena pública das redes sociais perde diversidade de opinião e a oportunidade de deixar o máximo de pessoas entenderem por que certas ideias são falsas e erradas, mesmo tendo essas ideias a chance de serem expostas pelos seus próprios defensores da forma mais clara que puderem. Varrer ideias falsas e erradas para debaixo do tapete não é exatamente algo que depõe a favor da nossa capacidade de mostrá-las falsas e erradas para qualquer observador.
O projeto Escola Sem Partido (PL 193/2016 do Senado), de iniciativa de grupos interessados em educação e do senador Magno Malta, não acredita na plena liberdade de expressão dos professores dentro das escolas públicas. As escolas, claro, não são as redes sociais. Se as redes sociais têm base legal (mesmo que não tenham a moral, na minha opinião) para limitarem a expressão dos usuários em seu próprio nicho, então deve haver também coisas que não é do interesse das escolas públicas que sejam expressadas dentro delas, especialmente por serem mantidas com o dinheiro de contribuintes que discordam radicalmente entre si. Quais são os interesses das escolas públicas? Parece que as escolas públicas não existem para doutrinar os alunos no cristianismo ou no ateísmo, pois assim os contribuintes ateus ou cristãos, respectivamente, sofreriam a injustiça de ter que aplicar seu dinheiro para resultados que não querem em suas crianças. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação proíbe a doutrinação religiosa ou irreligiosa nas escolas, para alívio de ambos. Mas até onde vai o controle do contribuinte sobre o que ele não quer que seja ensinado na escola pública? Os contribuintes criacionistas teriam o direito de limitar o ensino da teoria da evolução nas aulas de biologia? Os contribuintes que se dizem contra o "neoliberalismo" têm direito de ignorar Adam Smith e Friedrich Hayek e ensinar somente Karl Marx e John Maynard Keynes nas aulas de geografia, sociologia e história? Autoridades externas à escola são invocadas na tentativa de responder a essas perguntas, geralmente a autoridade dos especialistas. Mas a opinião de alguns especialistas de uma área pode ser repelente para os contribuintes, então apelar para os especialistas pode ser inútil para resolver o conflito.
O projeto Escola Sem Partido parece preocupado com o risco de o professor abusar de seu prestígio de autoridade do conhecimento para doutrinar alunos, que são parte hipossuficiente da sala de aula, em coisas cujo status de conhecimento está longe de ser estabelecido. Esta é uma preocupação boa, sua raiz parece ser a preocupação de que crianças/alunos possam ser convencidos pelos professores a se atarem a ideias falsas e erradas, o que é danoso para eles e consequentemente à sociedade em geral. Novamente, essa preocupação pede por árbitros. Quem tem competência para distinguir falsidades e erros de verdades e acertos? Talvez os especialistas no assunto?
De todas as premissas insinuadas no projeto, uma bem difícil de compreender é a menção, na justificativa e no parágrafo único de um artigo, à sexualidade. Será que os autores do projeto acreditam que alguma criança pode ser ensinada a ser gay, como expressou temerosamente Myrian Rios na ALERJ em 2011? Pois podem dormir sossegados, se ouvirem especialistas que por alguma razão foram ignorados no texto do projeto: a orientação sexual tem em boa parte raízes biológicas, e não é chamada de "orientação" no sentido de "educação", mas num sentido mais próximo ao sentido que tem dizer que uma bússola se orienta para o norte - espontaneamente. Se espontaneamente, ter uma orientação sexual de certo tipo está fora do nicho da educação. Não há no conhecimento acadêmico corroboração mínima à ideia de que orientação sexual é "opção sexual", como está dito no projeto. E se o projeto não está se baseando em conhecimento objetivo, então ele próprio é ideológico neste ponto, pois "opção sexual" é uma forma ideológica (e negacionista das evidências da psicologia, da genética e da neurociência) de se referir à orientação sexual. Se alguém me pergunta qual é a minha "opção sexual", as respostas que fazem sentido são "muito", "pouco", "às vezes", "nunca", "nesta posição", etc., não "heterossexual", "homossexual" ou "bissexual". O projeto erra feio, portanto, ao tentar levantar barreiras à ideologia nas escolas com mais ideologia.
Parece que quem tem menos liberdade que professores nas escolas são os alunos. Seu desinteresse pela lei de Ohm, pelos princípios de Euclides e pelas leis de Mendel pode ser completo, mas, se as diretrizes da educação pública foram seguidas à risca, terão de aprender essas coisas mesmo assim. Por que fazemos isso? Na esperança de tentar fazer dos alunos enciclopédias ambulantes, as escolas atropelam seus reais interesses e quase nenhum, no fim dessa tortura toda, se comporta realmente como uma. E é verdade que alguns, influenciados tanto por professores quanto pela pressão social de seus colegas (e parece que a segunda é bem mais importante) saem da sala de aula doutrinados numa série de proposições que não parecem ter passado por qualquer escrutínio crítico. Não é como se esses alunos não fossem entrar em contato com essas ideias de qualquer forma nas redes sociais - e professores que não puderem doutriná-los nas salas de aula ainda poderão tentar fazê-lo pelas redes sociais (o que é seu direito). Mas há algo de abusivo em utilizar a escola para isso. O projeto acerta na preocupação mas erra no método: professores interessados em doutrinar não se deixarão intimidar por avisos do governo pregados nas salas de aula. E pode ser que alguns, com ideias dignas de aprendizado e discussão, se deixem intimidar pelo aviso, considerando erroneamente que debater questões ditas polêmicas é introduzir ilegalmente (se o projeto for aprovado) "ideologia" na escola.
Parece que o motivo da disputa em torno do projeto é que existem áreas em que a opinião de alguns especialistas se confunde com ativismo para mudar a sociedade de certas formas que desagradam a muitos contribuintes. Nós ensinamos o teorema de Pitágoras para nossas crianças, mas não a doutrina igualmente pitagórica de que não devemos comer feijões, porque a verdade do teorema de Pitágoras foi estabelecida por dedução e pode ser reproduzida quantas vezes quisermos, enquanto não há motivos estabelecidos para evitar o consumo de feijões. Não é porque o teorema de Pitágoras é "ciência" enquanto o tabu contra feijões é "religião" ou "ideologia": isso é apenas um adendo dispensável.
O propósito mais nobre da educação, do ensino fundamental ao pós-doutorado, é formar e propagar conhecimentos e distingui-los de crenças diversas cuja justificação é mais incompleta que a do teorema de Pitágoras e cuja plausibilidade se encontra entre ele e o tabu supersticioso dos pitagóricos contra os feijões. E o erro maior na educação é tentar forçar esses conhecimentos em quem não tem qualquer interesse de aprendê-los. Uma solução é debater, entre interessados, as justificações para as propostas de conhecimento, deixando mais claro o que falta descobrir e quais crenças têm mais a ver com fé e subjetividade do que com inferência reproduzível a partir de evidências e premissas universalmente aceitáveis (para ser mais realista: a partir de debates de quem tem genuína curiosidade por cada problema e por isso busca saber o mínimo das respostas já propostas como solução). Para esse uso apropriado da educação ser possível em cada área, é preciso que os desinteressados não estejam no meio do caminho, empurrando com a barriga o peso de aprender coisas que não querem, e persigam seus próprios interesses (sejam eles em outras áreas de conhecimento, sejam eles em atividades que pouco têm a ver com conhecimento). Se os desinteressados em perseguir de forma não-dogmática conhecimentos em economia querem doutrinar seus filhos no comunismo marxista, que o façam no braço infanto-juvenil do partido. Se os desinteressados em discussão franca da existência de Deus em filosofia da religião querem doutrinar seus filhos no cristianismo, que o façam na igreja. Se os desinteressados em ciências da saúde e em debates em ética querem doutrinar seus filhos na crença de que a homossexualidade é uma opção sexual imoral, que o façam longe do parlamento.
E por falar em debates de questões éticas, aí está outro erro feio do projeto Escola Sem Partido: a insinuação de que moral/ética é fundamentalmente monopólio da religião e das famílias. Isso é falso. A ética é debatida com rigor na filosofia desde Platão e Aristóteles, e é uma afronta contra nosso legado cultural que os autores do projeto finjam que somente clérigos, pais e mães estejam interessados em códigos morais, quando os filósofos o fazem frequentemente com mais competência. Essa tentativa de divorciar ética de educação formal é absurda, é assumir que o subjetivismo ético ganhou sem protestos e que o relativismo cultural é a norma a ser imposta (incoerentemente). Eu duvido que os proponentes dessa ideia estariam confortáveis em permitir que famílias e clérigos ensinem o racismo às suas crianças, como acontece até hoje em algumas famílias no interior dos Estados Unidos, sem que nada nas escolas públicas ensinasse a alternativa filosófica de que o racismo é uma ideia objetivamente errada. Quem acredita na educação acredita que ideias erradas e falsas como as que estão em torno do racismo podem ser debatidas com franqueza, e que quanto mais aberto o debate, quanto mais seguir regras lógicas em vez de tabus sociais, maior é a chance do racismo se enfraquecer. O problema dos autoritários de boas intenções é não acreditar que ideias verdadeiras e morais saem mais fortes de debates francos e honestos entre os verdadeiramente interessados no assunto. Ter interesse e curiosidade sobre um assunto é por definição tratá-lo acima de caprichos pessoais, políticos e religiosos.
Os desinteressados em educação devem ceder espaço, e a divulgação do conhecimento deve ser distinguida do ativismo - até para que o próprio ativismo seja feito com base em coisa melhor que pensamento de manada, modas passageiras e arroubos emocionais polarizados com poucas chances de espaço para a curiosidade e o exame minucioso de propostas. Quem, mais uma vez, deve fazer isso? Especialistas? Talvez. Mas o consenso aparente dos especialistas, como a convicção de especialistas individuais, pode ser corrupto. O que se vende como área de especialidade pode ser mera trincheira contra críticos, e o que se vende como especialista pode ser mero demagogo carismático que conseguiu um número grande de pessoas cúmplices por interesses em comum distantes da sede de saber. Os próprios pitagóricos, em seu tempo, se pareciam mais com uma seita que com uma escola. Se hoje podemos distinguir o teorema de Pitágoras do tabu injustificado de que feijões não devem ser consumidos, é porque indivíduos interessados em sua própria educação examinaram as razões dadas pelos pitagóricos para as duas proposições - ou seja, porque existem especialistas confiáveis. Mas até hoje podemos nos perguntar se feijões são sempre uma boa opção alimentar, mesmo que todas as premissas pitagóricas em contrário fossem falsas. Podemos até nos perguntar se é verdade que pitagóricos tinham esse tabu. Se formos bons especialistas, faremos isso, pois bons especialistas são racionais, e racionalidade inclui honestidade sobre a própria falibilidade (coisa que não é comum em quem quer raptar a educação e transformá-la em doutrinação nas próprias crenças políticas ou religiosas). Só teremos esperança de nos educarmos de fato se estivermos livres para perseguir nossos interesses, o que nos faz especialistas genuínos e alunos curiosos, e dar de ombros para os assuntos que não queremos preenchendo nossas cabeças e profissões, nos quais outras pessoas poderão se especializar e nos impressionar com sua expertise. Se a educação é baseada na liberdade de querer saber, o impacto da doutrinação é mitigado com muito mais poder que com plaquinhas do governo com conselhos preocupados mas tolos. Doutrinadores e doutrinados aprenderão o seu lugar.
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Em resumo e conclusão: como está, o projeto Escola Sem Partido falha em expressar suas preocupações mais corretas de forma convincente e com uma proposta eficaz de evitar o abuso do ambiente escolar para a doutrinação. Sua atual redação sugere um interesse de afastar certos tipos de doutrinação em benefício de doutrinações mais tradicionais, em vez de fortalecer a educação nas escolas públicas. O projeto precisa de uma reforma para afastar a preocupação de que foi criado com interesse de blindar os alunos dos debates globais sobre liberdade sexual, e com o interesse de deseducar o público com a crença falsa de que moralidade é monopólio da família e da religião, em vez de reforçar a ética como mais uma área em que o debate franco educacional é não apenas possível, mas recomendável.