Envelhecimento e imortalidade na Biologia
O ser humano (e demais animais) envelhece e morre por esses prováveis motivos:
1 - Da imperfeição da replicação.
Os cromossomos que trazemos, que são cada um uma fita longuíssima de DNA enrolada em volta de proteínas, trazem nas pontas dessa fita uma seqüência repetida que em conjunto chamamos de TELÔMERO.
Quando as células se multiplicam no corpo (varia conforme o tecido, as células da pele e do tubo digestivo se renovam em pouco mais de uma semana), esse DNA tem de ser replicado - pois todas as células trazem em seu núcleo a informação de um ser humano inteiro.
Mas, por motivos moleculares, a cada divisão os telômeros de cada cromosso se encurtam. Imaginem que os telômeros sejam almofadas que protegem os genes em seu interior. A almofada vai ficando cada vez mais fina, até que os genes começam a ser afetados. Se os genes são afetados, a replicação fica cada vez mais difícil (isso é observável em idosos, por exemplo nas células de defesa que ficam cada vez mais escassas).
E se os genes são afetados, ou seja, vão sendo deteriorados porque não contam mais com a proteção dos telômeros, outros problemas podem aparecer. Por exemplo, a célula pode perder as rédeas que evitam sua replicação desenfreada.
Uma célula desregulada que se replica promiscuamente é o que origina o famoso câncer. Por isso, pessoas mais velhas são mais susceptíveis a câncer.
A alteração nesses genes nem precisa ser especificamente nos genes que controlam o ciclo celular (o ciclo de mitose, no qual uma célula-tronco gera células-filhas se dividindo ao meio).
Basta que sejam mutados genes que controlam receptores que fazem a célula perceber suas vizinhas, ou seja, se ela se encontrar "solitária", ela já vira um tumor (câncer).
2 - Do decaimento das estruturas biológicas
Esse outro motivo é intimamente relacionado ao primeiro.
O próprio ato de respirar (por extensão óbvia, comer, já que respirar é aproveitar a energia adquirida na alimentação) traz decaimento aos tecidos. Por decaimento entenda-se mutação. Toda mulher que compra cosméticos preocupada com rugas já ouviu falar em radicais livres - e eles são gerados justamente pelo mal recebimento de elétrons ao final da cadeia respiratória das mitocôndrias.
São tão prejudiciais os radicais livres que nossas células foram selecionadas, ao longo da evolução, de modo a apresentar organelas específicas para combatê-los, chamadas peroxissomos. Os radicais livres podem interagir com o DNA e alterá-lo, ou seja, causar mutações, alterar os genes que controlam o funcionamento das células e tecidos.
Mas, como nosso corpo sempre se renova, e precisa de energia (respiração e alimentação) para fazer isso, não tem como evitar mutações que vão se acumulando pelos tecidos ao longo de décadas.
Isso quer dizer que as células tronco, que originam a si mesmas e a células especializadas em diferentes funções pelo corpodivergem de seu tipo ancestral, e este tipo ancestral é o zigoto, a única célula que é o começo de todos nós, que surge da fecundação do óvulo pelo espermatozoide.
Ao divergir do tipo ancestral, as células de nossos corpos podem passar a produzir mal a elastina e o colágeno, fazendo as rugas aparecerem.
Podem sofrer defeitos na produção de melanina e originar as pintas pela pele.
Podem prejudicar o cérebro provocando mal de Parkinson ou de Alzheimer.
E por aí vão fazendo seu trabalho na nobre arte de envelhecer.
Como nossos corpos são resultado da seleção natural, existem genes que evoluíram de modo a evitar esse decaimento biológico de algumas formas, que não chega à perfeição porque a evolução favorece modos eficazes de garantir a sobrevivência até que aconteça a reprodução e a prole garanta a continuidade da linhagem.
Alguns desses genes, ao "detectarem" que a célula pode estar infectada por vírus ou se tornando cancerígena, fazem com que ela cesse sua atividade, quebre seu DNA e se dissolva em vesículas que são "comidas" pelas células de defesa. Isso é apoptose, também chamada de morte celular programada, que está acontecendo a todo minuto em algum lugar no corpo.
Além disso, células de defesa podem também detectar essa atividade conspiradora de um câncer e induzir essa morte celular programada.
As células tronco com maior poder de regenerar os telômeros são as que produzem os gametas (espermatozóide e ovócito).
Assim, embora gametas também sejam sujeitos a mutação, é evolutivamente vantajoso que outros indivíduos nasçam a partir de uma única célula, porque isso garante ao menos na juventude e idade reprodutiva que as células dos tecidos desse jovem tenham genes mais parecidos entre si, portanto "concordam" entre si, e trabalham harmoniosamente, e são submetidos como um "coro" à força da seleção natural, até que as forças inexoráveis do envelhecimento comecem a quebrar essa concordância e essa harmonia novamente.
"Nada na Biologia faz sentido senão à luz da evolução", disse o grande geneticista Theodosius Dobzhansky, e não é à toa. Até ao se falar em desenvolvimento e envelhecimento é necessário que se entenda a evolução.
Conclui-se que o câncer é um processo microevolutivo, em que a unidade de seleção é a célula.
Como o ser humano é um "tataraneto" de bactérias, e as bactérias são seres "imortais" (pois não existe entre elas a senilidade), que se reproduzem por bipartição, as células cancerígenas das pessoas podem retornar a essa condição ancestral de replicação indefinida.
E isso pode acontecer simplesmente porque o único "propósito" dos seres vivos, se é que se pode chamar isso de propósito, é fazer cópias de si mesmos.
3 - Da imortalidade
São bem conhecidas nas pesquisas da Biologia as células HeLa. São células imortais, com um genoma humano alterado (claro, afinal são câncer).
HeLa de Henrietta Lacks, uma mulher que morreu em 1951.
O que os cientistas fizeram foi pegar as células cancerosas de Henrietta e colocar em meio de cultura. Hoje, essas células juntas, em vários laboratórios pelo mundo, se somam em toneladas.
Elas causaram a morte da Sra. Lacks, foi um verdadeiro "golpe de estado" genético.
Hoje são algo diferente de uma célula de ser humano. Em vez de 46, podem ter até 82 cromossomos. E, por nada menos que seleção natural, as células HeLa têm um meio de preservar intactos os seus telômeros!
(Se não tiverem, são eliminadas pela seleção natural porque não se reproduzirão indefinidamente.)
Se uma célula HeLa gerar um gameta (o que não acontece hoje), o número diferente de cromossomos EVITA que esse gameta seja fecundado por um gameta de uma pessoa.
Portanto, a linhagem HeLa se isolou reprodutivamente da espécie humana.
Portanto, as células HeLa são uma espécie nova, descrita com o nome Helacyton gartleri (não Homo sapiens).
Se o mundo fosse feito de meio de cultura (e pode ser mesmo em alguns lugares), a espécie HeLa viveria independente da ajuda dos cientistas.
Hoje, a partir de estudos com pouquíssimas espécies multicelulares que aparentam não ter senilidade, e a partir do estudo do encurtamento do telômero, poderemos encontrar formas de aumentar o tempo de vida do ser humano. Se conseguirmos fazer conosco o que já foi feito com o verme Caenorhabditis elegans, chegaremos a viver até por volta dos 500 anos.
O segredo de uma vida mais longa parece estar em evitar os radicais livres, e isso inclui comer menos. Animais cuja dieta teve corte de calorias (cerca de 30%) podem viver até 50% mais.
Para alongar o tempo de vida do ser humano será necessário entender mais sobre como algumas salamandras são capazes de fazer membros amputados crescerem de volta, e como algumas hidras (animais aquáticos simples parentes das águas-vivas) conseguem regenerar a forma de seu corpo inteiro mesmo após serem dilaceradas num liquidificador.
Viver mais e melhor será o futuro graças à pesquisa em biologia, e nada disso poderia ser feito sem a teoria da evolução como pilar sustentador dessa ciência.
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Créditos das imagens:
Dercy Gonçalves: Andréa Farias / Wikimedia Commons
Cromossomo: ADRIAN T SUMNER / SCIENCE PHOTO LIBRARY
Fecundação: EYE OF SCIENCE / SCIENCE PHOTO LIBRARY
Células HeLa com adenovírus: SCIENCE SOURCE / SCIENCE PHOTO LIBRARY
C. elegans: SINCLAIR STAMMERS / SCIENCE PHOTO LIBRARY
Referências:
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