Como um possível falso trans levou uma cervejaria a perder bilhões de dólares
A história idiossincrática de Dylan Mulvaney à luz do novo fenômeno LGBT
A guerra cultural nos Estados Unidos fervilhou durante todo o mês de abril em torno de uma única pessoa: Dylan Mulvaney, 26 anos de idade, natural da Califórnia. Estrela transgênero do TikTok que foi convidada a entrevistar o presidente americano Joe Biden no ano passado, Dylan atraiu um boicote à maior cervejaria do mundo, a Anheuser-Busch InBev SA, após fazer um vídeo no primeiro dia daquele mês em que promovia a cerveja Bud Light, uma versão levemente menos alcoólica e menos calórica da Budweiser. As latas promocionais, não comercializadas, tomadas em um banho de espuma, traziam o seu rosto.
O boicote, chamado por personalidades como o cantor country Kid Rock, que em protesto atirou em um engradado de Bud Light com uma submetralhadora, parece ter surtido algum efeito. Duas semanas após o vídeo, a Bud Light caiu 17% em vendas em comparação ao mesmo período do ano anterior. As concorrentes Coors Light e Miller Lite, produtos similares, subiram 17,6% cada ao mesmo tempo, segundo a firma de consultoria Bump Williams. Na última semana de abril, a queda da Bud Light atingiu 26%.
Na semana que terminou em 1º de julho, a queda continuou, atingindo 28,5%. O prejuízo é calculado em cerca de US$ 20 bilhões (R$ 98 bilhões na cotação atual).
Após um período de silêncio, a cervejaria respondeu de duas formas ao boicote. Com uma nota do diretor executivo; e pelo afastamento da vice-presidente Alissa Heinerscheid, publicitária responsável. “Esta marca está em declínio”, disse Heinerscheid sobre a Bud Light em uma entrevista de 23 de março que ressurgiu após a polêmica, “há muito tempo e, se não atrairmos jovens que bebem para esta marca, não haverá futuro para a Bud Light; precisamos evoluir e elevar essa marca icônica, (...) o que significa a inclusão e mudar de tom, ter uma campanha que seja inclusiva, mais leve, mais brilhante, que apele às mulheres e aos homens, e a representatividade é o coração da evolução”.
A executiva também comentou que a Bud Light tinha uma imagem muito associada às fraternidades masculinas das universidades e a um “humor ultrapassado”. Não está claro, contudo, se ela sabia da campanha ou se envolveu diretamente.
O diretor executivo Brendan Whitworth se manifestou em notas de pesar, pedindo que os consumidores o culpem, mas sem especificar qual exatamente foi o problema. Em manifestação recente, ele fez um apelo pelos 65 mil empregos que poderiam ser perdidos por causa do boicote.
Quem é Dylan Mulvaney e por que atraiu a ira dos consumidores?
Entre 2015 e 2020, Mulvaney, que se apresentava à época como um homem gay, atuou em um papel secundário, de importância menor, no musical “The Book of Mormon”, dos criadores da série animada de comédia South Park em parceria com o músico Robert Lopez. O musical, também humorístico, trata de missionários da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias que fazem uma missão de evangelização em Uganda. Quando veio a pandemia, veio o desemprego.
“Baixei o TikTok”, recorda Mulvaney em entrevista de setembro passado ao New York Observer, “presumindo que era um aplicativo para crianças. Quando saí do armário como mulher, fiz esse vídeo de comédia do ‘primeiro dia sendo uma menina’. E explodiu.”
Este relato, contudo, está muito resumido. Antes, “saiu do armário” no aplicativo chinês se declarando “não binário”, uma nova identidade popular entre jovens progressistas que não seria masculina nem feminina, com pronomes neutros. “Eu sou Dylan, hoje é meu aniversário e estou fazendo um chá de revelação de gênero. É para mim mesmo. Estou largando ‘ele’ e meus novos pronomes são ‘they, them, theirs’”.
A identidade neutra não durou muito. Em março de 2022, declarou que “sou uma menina” no TikTok. “Quando eu tinha quatro anos, disse para a minha mãe ‘sou uma menina, Deus cometeu um erro’”, disse Dylan, que começou então uma série de vídeos curtos documentando diariamente sua nova vida como “menina”.
“Em uma parte das conversas sobre gênero contemporâneas”, comentou em seu podcast o jornalista Jesse Singal, que cobre estudos sobre a transexualidade há anos, “há um entendimento superficial e infantil de ‘sentir-se como um menino’ e ‘sentir-se como uma menina’”. Na opinião dele, o modo como Dylan Mulvaney se apresenta é “feminino estereotipado, com presilhas no cabelo, (...) não entendo como essa pode ser considerada uma interpretação progressista do gênero”.
A jornalista Katie Herzog, parceira de podcast de Singal, concorda e opina que a escolha de apresentação é “chamativa”, “como um homem crescido com roupas de menina pequena, não com roupas de mulher adulta”. A aparência estereotipada e infantilizada se estende à escolha de temas para os vídeos.
No primeiro vídeo da série diária, Mulvaney diz “dia número um de ser uma menina, e eu já chorei três vezes, escrevi um e-mail irritado que não enviei, comprei vestidos online que não posso pagar, e, quando alguém perguntou como eu estou, eu disse ‘estou bem’, quando não estava bem. Como eu me saí, garotas? Girl power!”
No décimo segundo dia, relata que uma mulher pediu absorvente interno em um banheiro feminino e, como não tinha, agora carrega sempre consigo algumas unidades caso alguém peça novamente. “Usei muitos banheiros femininos, nunca pedi a ninguém por absorventes internos, nunca me pediram, nunca ouvi ninguém pedir a ninguém, tenho dificuldade de acreditar” na veracidade do relato, confessa Herzog. Mulvaney disse que recebeu da marca de absorventes internos Tampax uma caixa do produto em abril de 2022, mas negou que tenha recebido dinheiro da empresa. A Tampax também nega que tenha acordo publicitário com a celebridade do TikTok.
Não está claro que é o mero fato de ser transgênero o que atraiu os críticos e o boicote. A atriz transexual Laverne Cox, que atuou na série da Netflix Orange is the New Black, fez inúmeros comerciais nos últimos anos. O site iSpot TV conta 19 propagandas nacionais na TV americana com Cox que foram ao ar mais de 21 mil vezes nos últimos 30 dias. Oito dos comerciais são para a marca de vodca Smirnoff. Não há registros de campanha de boicote que sequer seja comparável à feita contra Mulvaney e a Bud Light.
O método e os céticos
Mulvaney fez uma cirurgia de feminização facial, mas não parece ter mudado sua aparência de outras formas que indiquem um tratamento hormonal. Michael Knowles, apresentador da empresa de mídia Daily Wire, acredita que “o fato de que ele é um ator é central, aqui, por causa da teoria moderna da atuação”. Atores ditos “do método” são treinados a expor sua intimidade psicológica a níveis extremos. “O figurino não está de fora”, resume Knowles, que foi treinado como ator, “está por dentro. Quando você está no palco, você está sentindo, pensando e desejando as coisas que o personagem deve sentir, pensar e desejar” para atingir uma máxima aparência de naturalidade. “Ele construiu um personagem como qualquer outro ator, e termina conseguindo patrocínio e se tornando um fenômeno social ao ponto de se sentar com o presidente dos Estados Unidos. É o maior ator da nossa geração”, conclui.
A conservadora transexual Blaire White, uma criadora de conteúdo independente, não acredita que Mulvaney seja realmente transexual. A psiquiatria propõe que a transexualidade é a condição em que a mudança de sexo (até onde isso é possível, com mudança de vestuário, hormônios e — o que não é feito em todos os casos — cirurgias) é o tratamento indicado para a disforia, um profundo desconforto com o próprio sexo de nascença e desejo de mudá-lo. É uma minoria dos casos de disforia. Cerca de 90% das crianças disfóricas têm remissão espontânea do transtorno, sem necessidade de transição, daí o termo “crianças trans” ser inapropriado.
Alguns comportamentos de Mulvaney não são compatíveis com o desconforto esperado da disforia: por exemplo, em um dos vídeos do TikTok, propôs que a “saliência” (vulgo “mala”) de seu pênis sob as roupas femininas deveria ser “normalizada”: “mulheres podem ter mala”, cantou com uma melodia inventada. “Parece que Dylan procurou no Google estereótipos ofensivos sobre as mulheres e fez um vídeo sobre cada um”, comenta White. “Isso é woman face”, complementa, fazendo uma comparação com “black face”, uma prática antiga de ridicularização das pessoas negras.
Uma inserção atrapalhada no debate
Seis meses após o início de sua série sobre ser “menina”, Mulvaney foi à Casa Branca entrevistar o presidente Joe Biden e disse a ele “este é o meu 221º dia de transição pública [de gênero]”. “Adorei”, respondeu o mandatário. Na entrevista, disse que se sente “grata por estar num estado que dá acesso aos recursos de que preciso” para transicionar, uma crítica pouco velada a estados mais conservadores que têm aprovado leis para proteger crianças disfóricas de prescrições de bloqueio da puberdade com drogas (um tratamento arriscado e carente de evidências científicas, que parece prejudicar a saúde delas, especialmente os ossos), transição hormonal e cirurgias.
Casos de jovens arrependidos da transição já são conhecidos, e, no Reino Unido, o serviço de identidade de gênero centralizado na clínica Tavistock está sendo encerrado até o ano que vem. A clínica estava encaminhando 96% das crianças disfóricas para o bloqueio da puberdade, segundo o jornal The Telegraph. No Brasil, a Universidade de São Paulo também realiza experimentos de bloqueio da puberdade. Um estudo de uma década publicado pela Tavistock indica que não há benefício de melhora da disforia com esse tratamento. Acadêmicos suspeitam que há um fenômeno novo, diferente da transexualidade clássica, de “contágio social” de identidades sexuais minoritárias entre os jovens, incluindo um novo tipo de disforia de “início rápido”. Mas a academia, com desproporção de influência progressista e identitária, está resistente ao estudo do fenômeno — um artigo do respeitado sexólogo J. Michael Bailey foi rejeitado em junho pela Springer Nature sob alegação de que não houve consentimento informado de mais de 1600 participantes para um questionário. Ele diz que foi por pressão de ativistas.
Katie Herzog conta que começou a seguir Dylan Mulvaney por curiosidade negativa, mas, com o tempo, “ela foi ficando mais simpática para mim”. A jornalista diz que entende as feministas que se irritam com Dylan, mas pensa que o apelo para o público está no modo como “irradia alegria e positividade, e as pessoas gostam de ficar na companhia de quem é positivo”. Ela especula que boa parte dos seguidores são “mulheres heterossexuais, que sempre amaram gays divertidos do teatro, e podem dizer a si mesmas que são ‘aliadas’ consumindo esse conteúdo positivo”.
Após semanas de silêncio em suas contas nas redes sociais que somam mais de 13 milhões de seguidores, Dylan Mulvaney respondeu com um vídeo no Instagram. “É meu dia número 9610 como um ser humano — vou deixar gênero de lado, já que foi o que nos trouxe aqui. Muito foi dito sobre mim. O volume era tão alto que nem senti que eu era parte da conversa”, reflete, mencionando seu número de seguidores. “Cresci numa família conservadora e tenho um grande privilégio, pois eles ainda me amam muito. Cresci na igreja, e ainda tenho minha fé, à qual estou tentando me agarrar agora. Sempre tentei amar a todos, mesmo as pessoas que tornam isso muito difícil. Tudo bem ficar frustrado ou confuso com alguém, mas não entendo a necessidade de desumanização, de ser cruel”.
Disforia cada vez mais questionável
Em maio, Dylan ‘saiu do armário’ mais uma vez, dessa vez como lésbica. Se fosse verdade, seria um dos primeiros casos documentados de homem gay que se tornou ‘mulher lésbica’. No estudo da transexualidade, há dois principais (talvez únicos) tipos de trans: transexuais homossexuais e autoginéfilas, uma tipologia proposta pelo sexólogo Ray Blanchard. O primeiro tipo manifesta disforia mais cedo e, como sugere o nome, se desenvolve com atração por pessoas do mesmo sexo.
O segundo tipo, por outro lado, não tinha trejeitos na infância, gosta de mulher, e com frequência só faz transição em idade avançada. Enquanto o primeiro tipo pode ser visto como um extremo da variação dos homossexuais afeminados, as autoginéfilas são homens biológicos que sentem excitação sexual ao pensar em si mesmos como mulheres — podem ser entendidas como um extremo da variação dos homens heterossexuais que têm fetiche de crossdresser. Uma hipótese para explicar isso é a “inversão de identidade de alvo erótico”: em vez da atração sexual partir de si para outrem, faz uma curva, voltando para si: gosta de mulher, mas especialmente de si mesmo enquanto mulher. É uma parafilia, ou seja, um padrão sexual cujo alvo é atípico, diferente de uma outra pessoa adulta que consente. Um novo estudo de J. Michael Bailey revelou que isso também acontece, com certa frequência, entre homens com outras parafilias como atração específica em direção a pessoas amputadas (muitos querem ser amputados, alguns se amputam), zoofilia (muitos querem ser animais) e lipofilia (atração por obesos mórbidos e com frequente vontade de serem obesos eles próprios).
Não são conhecidos casos de transexuais homossexuais que de repente se transformem em autoginéfilas. A plausibilidade de Dylan Mulvaney realmente ser trans, portanto, é estremecida mais uma vez por sua declaração de ser “lésbica”, já que “começou” como um homem gay.
Talvez seja mais parcimonioso concluir que Mulvaney não tem nada em comum com transexuais ‘clássicos’, sendo parte do novo fenômeno de contágio social de identidades LGBT que levou os estudantes da Universidade Brown a 40% de supostos não-heterossexuais, com 800% de crescimento de identidades alternativas como “queer” (termo mal definido, às vezes tratado como guarda-chuva, usado originalmente como xingamento contra gays) desde 2010. A proporção natural de LGBT na sociedade, proposta por Bailey em artigo de 2016, é de 5%. As minorias sexuais, antes marginalizadas e injustamente tolhidas em suas liberdades, hoje foram glamourizadas e é nelas que os jovens estão procurando sua turma. O futuro dirá se essa turma é natural e espontânea para os recém-chegados.