Evidências de que a comunidade do Direito no Brasil é intelectualmente corrupta
Alguns pensamentos rápidos sobre uma área que não é a minha (que crime!)
O texto abaixo é uma adaptação de um fio do Twitter que fez sucesso. Estou sempre publicando pensamentos soltos no Twitter. Pediram-me acesso diferente a este, então aí vai. Coloquei notas, dobrando o tamanho do texto, para explicar do que estou falando em cada ponto e recomendar mais de cada assunto.
Há uma massa de pessoas diplomadas neste país que quer nos convencer que uma "reclamação" pode ser tratada como "ação disciplinar" para cassar um mandato eletivo,1 mas uma abundância de evidências de favorzinho de empreiteira em sítio, triplex e instituto com o nome do político, não.2 O que isso prova é que o senso comum3 do cidadão brasileiro é superior ao teatro de intelectualidade em direito montado no país, é superior às ilibadíssimas instituições oficiais e acadêmicas que deformam as mentes das pessoas na área. É por isso que é quase impossível debater moralidade com um "operador do direito" médio neste país.4
Com frequência, os estudos dele serviram para torná-lo uma pessoa mais burra, não mais sábia. Se você falar dos principais filósofos morais dos últimos 50 anos,5 vai receber como resposta um olhar de incompreensão. Para o "operador do direito", filósofos morais são os nossos legisladores, já que ele insiste em puxar o assunto para a lei sempre que você quer debater certo e errado. Filósofo moral é o Tiririca, a Sâmia Bomfim e o Renan Calheiros. Esses, sim, só fazem as leis mais corretas e sábias que devem ser o limite do nosso comportamento.
Como, a não ser por essa hipótese de corrupção intelectual, poderíamos explicar o fato de um Alexandre de Moraes achar que tem argumentos melhores que John Stuart Mill?6
Outra evidência a favor da hipótese da corrupção intelectual é o uso do juridiquês: quanto mais foco na forma, menos investimento no conteúdo. Quem fala inglês deveria olhar autos de processos em países de língua inglesa. Claros como cristal.7 Comparem com a pompa de um Gilmar Mendes.8 Os “operadores do direito” são um grupo que faz sinalização de inteligência com palavras de baixa frequência de uso na língua portuguesa. É uma forma de se afastar do escrutínio intelectual do resto da população.
Como ouso palpitar numa área que não é “a minha”? É a simples ousadia de ter uma cabeça e usá-la. Não vem com pretensão nenhuma além desta. Cortina de fumaça de complicações e expressões em latim não é pensamento cuidadoso. Sinto muito. E eu não preciso estudar nem uma lei pra saber disso.
Estou falando da cassação do mandato do deputado federal Deltan Dallagnol, ex-procurador da operação Lava Jato que, entre várias coisas, pôs Lula na cadeia. Não estou me comprometendo com a ideia de que a operação inteira foi ilibada: ela foi correta até onde as evidências levantadas mostram isso. Certamente o gigantesco volume de dinheiro aparentemente desviado recuperado sugere que algo muito sério foi tocado por ela. A Lei da Ficha Limpa basicamente prevê que um membro do Ministério Público não deve ter permissão para concorrer a cargo eletivo se deixou o cargo para basicamente escapar de ações disciplinares. Deltan não devia nada, as ações contra ele tinham sido concluídas em 2021. O que o TSE fez, incluindo voto de juiz denunciado pela própria Lava Jato, num julgamento que durou só um minuto (!), foi alegar que “reclamação” formal contra Deltan poderia ser tratada como ação disciplinar. Veja o que o jurista Túlio Vianna disse a respeito.
Aqui, é claro, estou falando do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Eu tive que explicar até para membro da minha família que ele não foi “inocentado”. O que o STF fez foi entender que ele foi julgado pela corte errada (“erro de CEP”, como dizem espirituosamente) e que o ex-juiz Sergio Moro se comportou de modo enviesado contra ele, comprometendo a saúde do procedimento. Mesmo se eu aceitar essas ideias do STF, isso não toca em vários fatos: os nomes dos netos nos pedalinhos no sítio de Atibaia, nem na reforma da cozinha do sítio, nem na aparente menção na planilha da Odebrecht, nem na declaração do porteiro do condomínio onde estava o triplex, etc. É muita coisa para justificar, para alegar que foi tudo inventado por uma grande conspiração de Curitiba. Vale lembrar que Moro não era o único juiz envolvido na Lava Jato. Lembro de um tribunal de recursos que votou com unanimidade por manter as condenações contra Lula, uns dez juízes. Se for tudo conspiração, isso só reforça a ideia deste texto: que grande parte da comunidade que estuda e aplica direito no Brasil é intelectualmente corrupta.
Quando falo em senso comum, geralmente estou pensando na proposta do livro de filosofia da ciência que traduzi, que considera importante a contribuição dele para a ciência (mas não reduz a ciência a ele). Eu não acho que o senso comum é sempre sábio. O senso comum já aceitou o linchamento. O senso comum a bolsões culturais específicos do nosso país ainda aceita. Mas os intelectuais que desprezam o povo perdem bastante coisa, pois o senso comum pode ser interpretado, na sua melhor forma, como a convergência de milhões de cabeças pensando independentemente, até o ponto em que são de fato independentes, o que sabemos que é variável de cabeça para cabeça.
Isso é baseado na minha experiência debatendo com essas pessoas. Obviamente, também já conversei e debati com pessoas formadas em direito muito intelectualmente honestas, inteligentes e interessantes.
Aqui, eu estava pensando especificamente no Derek Parfit, recém-falecido filósofo britânico. Mas o problema de ler só a dita “filosofia continental” e ignorar a “filosofia analítica” (não que uma seja sempre ruim e a outra sempre boa, não é assim) é generalizado no Brasil, não é só no direito. O meu ponto principal aqui é que muitos dos “operadores do direito” não parecem ter lido filosofia moral o suficiente. Incluindo ministros do STF (que raramente escrevem os próprios votos…).
Não tenho intenção de fazer apenas um apelo à autoridade superior do J. S. Mill sobre a do ministro, aqui, embora eu pensei que seja, sim, superior no assunto. Mill é um dos principais a serem lidos em liberdade de expressão. Muito do que “Xandão” faz vai contra tudo o que Mill defendia. Parece algo novo, pois o ministro falava (da boca pra fora?) coisas sensatas sobre liberdade de expressão em 2018. Tudo isso sumiu, e ele não se comporta como alguém que leu e respeita argumentos como o do “livre mercado das ideias”.
Eu li autos de julgamentos canadenses envolvendo questões de gênero e do caso de James Damore vs. Google. Além de alguns documentos jurídicos históricos britânicos do século XVIII, quando “sodomia” era crime.
Sobre o juridiquês e a importância da clareza na comunicação na área, recomendo a palestra TEDx da portuguesa Sandra Fisher-Martins. Como ela diz: o preço da linguagem rebuscada desnecessária é um Apartheid da informação.
Abandonaram não só os princípios que regem o direito. Talvez tenham abandonado qualquer princípio.
A corte constitucional não faz mais a interpretação da legislação infraconstitucional conforme a constituição, senão, faz a interpretação da constituição conforme ( a minha vontade particular).
Noções comezinhas sobre competência são rasgadas e pisoteadas.
Usa-se a lei em desfavor das pessoas, e o faz em matéria de direito penal. A proibida analogia em "malam partem" virou a regra.
A vedação constitucional da razoável duração dos processos se perdeu no tempo como um relógio quebrado, que 2 vezes por dia está correto e cuja única utilidade disso é fazer lembrar de nova prorrogação. E a conexão que faz com que não hajam sentenças contraditórias é usada para arrastar pessoas comuns (os súditos) para serem julgadas pelos nobres com foro especial por prerrogativa de função. Excrescência que julga excelências cobertas de privilégios e que a muito já deveria ter deixado de existir e agora julga o relés mortal.
Minha opinião: era preciso que houvesse volume de gentes culpadas a dar corpo e sustenção.
E falo isso com grande pesar (e atualmente com receio), mormente considerando que quando menos se espera você pode ser enquadrado.
Não reconheço mais o direito que estudei, não reconheço mais os princípios pelos quais fui criada e me pautei a vida toda.
Dirão que é porque sou velha e reacionária. Uma coisa inútil a ser descartada.
A quem recorrer? Somente ao justo Juiz e a paciência em esperar o Seu agir.
Muito bom! Parabéns pela coragem de expor de forma tão clara.