Por que banir "discurso de ódio" e "fake news" só pode ser censura, não adianta teimar
Explicando pacientemente os fundamentos da minha posição
Censura é a supressão ilegítima da expressão. É imoral e deveria ser ilegal. Ou seja, sabemos que é errada pela reflexão filosófica, e, como cidadãos organizados em sociedade, temos a esperança de que o poder estabelecido codifique como lei este princípio moral.
A reflexão filosófica aponta para imoralidade quando nos colocamos no lugar de alguém cujas opiniões sabemos que são erradas, mas é sincero em sua crença. Temos a capacidade de empatizar: como eu me sentiria se, por uma opinião, eu sofresse severas sanções sociais, multas, perda de emprego, prisão? Eu mudaria de opinião com isso, ou sentiria uma indignidade abjeta, como se sofresse um espancamento simbólico? Prisioneiros temem a cela solitária porque o contato social é uma necessidade humana tão fundamental que nós podemos enlouquecer ou morrer em isolamento. A censura é um instrumento de isolamento, e a remoção da capacidade de uma pessoa de se expressar socialmente é uma pena de morte simbólica. Não é só por essas consequências em potencial que a censura é errada, mas também por violar princípios fundamentais de dignidade e autonomia do indivíduo.
Por isso, a limitação à expressão deveria ser feita com extremo cuidado, como forma de assegurar participação igual e livre na sociedade democrática, jamais com efeito de infligir indignidade e violar princípios.
No que delineio a seguir, pretendo mostrar que “discurso de ódio” e “desinformação” ou “fake news” são limites ilegítimos à expressão, fazendo de sua supressão um tipo de censura.
O direito de odiar
Comecemos por “discurso de ódio”.
Ao pé da letra, se o que se está tentando suprimir é o ódio, a minha objeção é que este é um sentimento humano natural, e às vezes até moralmente justificado. Ora, quem não odeia o abuso sexual de crianças? Acaso odiar a crueldade é ruim? É de uma infantilidade intelectual risível o “ódio ao ódio”, como expliquei em outro texto.
O termo, contudo, não parece ser usado ao pé da letra, mas como metáfora, para se referir a crenças desumanizantes, preconceituosas, injustamente discriminatórias.
Por um lado, o projeto de tipificar esse tipo de crença como crime está fadado ao fracasso. A “crença preconceituosa” de um é a “verdade objetiva” de outro. Ao dizer isso, não endosso o relativismo epistemológico ou moral, estou só apontando para a impossibilidade de praticar essa esperança totalitária e utópica de banir o preconceito pela força em uma democracia. Para uma tentativa de definir o que é preconceito de uma forma mais precisa que o dicionário, confiram este texto meu:
Por outro lado, não é bom, para nenhum grupo alvo de preconceito, ser “mimado” pela lei: não é bom porque cria um tratamento diferenciado dos cidadãos, com base em estarem dentro ou fora da “categoria protegida”, o que pode se voltar contra a própria categoria (pouca coisa revolta mais as pessoas que a falta do que chamam de “procedural justice”, justiça de procedimento), e não é bom porque vai contra o conselho terapêutico de criar resiliência diante do erro simbólico e de expressão alheio em vez de cultivar a própria fragilidade, exaltar o sentimento de ofensa como se fosse um instrumento de estabelecimento da verdade.
Fazer o contrário cria pessoas mentalmente doentes e sociedades doentes. Além disso, muito da expressão caracterizável como “discurso de ódio” tem raiz na variação humana relacionada aos transtornos psiquiátricos. A genética psiquiátrica tem mostrado consistentemente que não há uma linha nítida separando transtorno de normalidade. A normalidade da atenção e atividade humanas, por exemplo, pode ser aferida de variantes genéticas ligadas ao Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, que tem uma das maiores medidas conhecidas de herdabilidade.
Logo, não funciona o argumento de abrir exceção para os transtornados falarem impropérios. Pessoas que os dizem por motivos que são constituintes de sua própria natureza serão punidas, e isso é cruel.
O direito de mentir e errar
Passemos agora à “desinformação” ou “fake news” ou “desordem informacional” ou “maliformação” (os pró-censura são muito criativos em inventar novas embalagens chamativas para seu produto nocivo).
Em primeiro lugar, mentir é um direito seu. Pode conferir, aí. Você tem direito de mentir aqui mesmo, no ordenamento jurídico do Brasil, mesmo que falho. Como eu disse numa audiência da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados, eu tenho o direito de mentir que sou bonito, inteligente e magro. Pode parecer um exemplo bobo e certamente é um chiste, mas também é muito sério. Como dizia o Dr. House, os seres humanos mentem por mil razões, algumas das quais são perfeitamente legais. Além disso, somente numa distopia de Estado policial poderia haver algum recurso para fazer “checagem de fatos” de tudo o que sair da boca de alguém. Nós só pegamos os mitômanos com anos de observação (oi, Patrícia Lélis).
Para complicar, o que é uma mentira ou “desinformação” hoje, ou parece ser, pode se tornar uma verdade no futuro. Por acaso o Facebook estava certo quando me censurou por eu dar meu parecer de biólogo que a hipótese do vazamento laboratorial do coronavírus da Covid era plausível e não descartável? Ou estava certo ao me punir repetidamente por eu insistir que gosto do termo “viado”, usar em mim mesmo e defender que o termo seja resgatado? É isso que querem transformar em lei.
O que você não pode fazer é contar mentiras tipificadas como crimes, como difamação objetiva e calúnia, ameaça credível e incitação à violência. É isso que o ministro Flávio Dino, agora no STF, antes no Ministério da Justiça, fingiu que não sabia quando foi checado pelas Notas da Comunidade do Twitter. Mais recentemente, Lula expressou o desejo de criminalizar a mentira em um discurso. O projeto de banir desinformação e mentira, como o projeto de banir o ódio, é uma esperança totalitária e utópica.
Em segundo lugar, com frequência a justificação dos defensores inconfessos da censura para expandir os limites à expressão e suprimir a “desinformação” é que as fake news causarão esta ou aquela consequência ruim. Esse argumento é primo de outro usado para defender censura a “discurso de ódio”. Minha resposta para isso é: provem. Ilação a respeito de supostas futuras consequências negativas exige evidências de que é isso de fato que ocorrerá. Sem essas evidências, esse raciocínio leva (na verdade já levou) a atos ilegais como pesca probatória e punição de pessoas por crimes futuros ao melhor estilo Minority Report.
Como já mostrei para a alegação absurda “piadas matam” (que eu tratei como generosidade para torná-la uma tese mais forte), a literatura científica não corrobora as insinuações alarmistas usadas por defensores da censura contra o humor.
Não há lastro epistemológico, evidências ou bons argumentos para firmar uma conexão causal necessária entre a expressão de “desinformação” e consequências ruins que justifiquem uma criminalização desse termo amplo e ambíguo.
Defender a ação do Estado, com seu monopólio do uso legítimo da força, contra "desinformação", na ausência desse nexo causal demonstrado, é, portanto, mais um exemplo de esperança utópica e totalitária.
Finalmente, o erro e a mentira devem ficar maximamente livres para que todos aprendamos pelo exame dos motivos pelos quais são erro e mentira. Como alertou John Stuart Mill, acreditar em verdades sem saber por que são verdades é uma atitude dogmática e de pouco valor. É estar certo por acidente, não por mérito epistêmico. O exame do erro e da mentira é o real trabalho da busca pela verdade, respondendo desinformação com informação, expressão com mais expressão. Alegar que esse serviço é feito pela censura, portanto, é uma fraude.
É pelas razões expostas acima que eu faço o que eu faço no jornalismo.