Autoritarismo sanitário: onde está o ponto fulcral de discordância sobre medidas coercitivas na pandemia?
Alguns pensamentos sobre responsabilidade individual e liberdade.
No primeiro trimestre de 2020, enquanto “divulgadores de ciência” diminuíam a ameaça da covid comparando-a à ameaça supostamente maior da homofobia, ou escreviam textos nos blogs da Unicamp não recomendando o uso de máscaras, eu comecei a sair para o supermercado com máscaras que eu mesmo improvisei. Eu olhava ao redor no supermercado, e era o único de máscara. As máscaras ainda não têm eficácia alta demonstrada pelo tal do “padrão ouro” da pesquisa médica. Porém, têm algo a seu favor: plausibilidade física, ao menos superficial. Se você atira bolas de tênis numa rede de gol de futebol, elas passam fácil pelos buracos, porém, passam menos do que passariam se não houvesse rede nenhuma. Ignorei, portanto, os conselhos dos “divulgadores” baseados, como de praxe, em notas à imprensa da OMS engolidas acriticamente, e preferi me expor mais ao ridículo do que ao vírus. Também nesse tempo eu já estava dizendo que havia uma possibilidade real de o vírus ter escapado de um laboratório, o que essa turma alegava ser “conspiracionismo”, e eu duvidava publicamente dos dados da China, que essa turma divulgava também acriticamente (“são os dados que temos para trabalhar”, diziam). No curso de um ano, minhas esquisitices foram aceitas no mainstream. E, um ano depois, eu contraí covid, provavelmente numa visita ao Detran. Recuperei-me, mas confesso que, apesar de ter sido leve, eu tive mais medo do que o normal — é difícil não ter medo quando se divide um lar com seu cônjuge e não é só a sua vida a fonte das suas preocupações.
Minha intenção no parágrafo acima não é só me gabar pelas minhas posições que se revelaram acertadas — é uma das intenções, sim ¯\_(ツ)_/¯ —, mas deixar mais ou menos claro que eu não subestimo o risco da covid. Ainda assim, eu condeno o alarmismo da turma já citada, e eu condeno todas as iniciativas de tentar forçar indivíduos a tomar vacina, sejam as diretas, sejam as indiretas, como os passaportes. O caso geral das vacinas é que têm alta eficácia e os efeitos colaterais, até onde os conhecemos, apresentam riscos que são ordens de magnitude inferiores aos riscos de contrair o vírus. Repito: caso geral. Casos específicos, como o de gestantes, o de jovens rapazes e riscos de inflamação cardíaca, além das comorbidades que tornam a covid mais preocupante, devem ser considerados caso a caso, e a diferença entre os riscos varia caso a caso.
Já deve ter ficado claro que essa variação caso a caso nos riscos das vacinas já é algo que justifica minha posição contrária à coerção sanitária aos hesitantes em tomá-las. Porém, não vou me focar nisso: a questão é empírica, e há um dinamismo na coleta de evidências que muda rápido os cálculos, e pode ser que se conclua, oportunamente, que todos os riscos das vacinas tinham baixíssima frequência. Em vez disso, vou falar apenas do suposto argumento liberal a favor da coerção.
O suposto argumento “liberal” a favor da coerção sanitária
É correto forçar as pessoas a tomar essas vacinas da covid, dizem esses liberais, da mesma forma que é correto forçar motoristas a usar o cinto de segurança e a obedecer a lei de trânsito, como a lei contra trafegar na contramão. Este é o princípio do dano, articulado pelo filósofo John Stuart Mill: é justo limitar a liberdade de um indivíduo quando o exercício dela impede outras pessoas de desfrutar da mesma liberdade, ou quando representa um perigo presente para as suas vidas. Portanto, arrematam, quem chama o passaporte da vacina e os mandatos de vacinação de autoritários tem uma ideia deturpada de liberdade comparável à ideia de que seria um mero desfrute da liberdade dirigir bêbado, ultrapassar sinal vermelho, dirigir sem cinto.
O primeiro problema da analogia é a menção ao cinto de segurança ou outras coisas às quais somos compelidos “para o nosso próprio bem”. O próprio formulador do princípio do dano, Mill, seria contra esse tipo de coerção caso sua justificação fosse o próprio bem do indivíduo:
“[O] único propósito pelo qual o poder pode ser exercido corretamente sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra a sua vontade, é para impedir o dano aos outros. O seu próprio bem, seja ele físico ou moral, não é uma garantia suficiente. Ele não pode ser compelido a fazer ou abster-se de fazer algo porque será melhor para ele, porque o fará mais feliz, porque, na opinião dos outros, agir assim seria sábio, ou até correto. Essas são boas razões para admoestá-lo, debater com ele, persuadi-lo, ou entretê-lo, mas não para compeli-lo, ou apresentar-lhe um mal caso ele faça o contrário.”
— John Stuart Mill. On Liberty. 1859. Edição Kindle, localização 342. Tradução livre, ênfase minha.
Apresentar-lhe um mal caso ele faça o contrário parece uma descrição profética de coisas como o passaporte da vacina, que busca coagir indiretamente, em vez de catar os indivíduos pelo cocoruto e espetá-los com a seringa (compeli-los). Em debate, percebi que algumas pessoas pensam que somente o último caso conta como autoritarismo, não o primeiro, porque só o último fica feio frente às câmeras. Estão erradas, e neste erro revelam que sua preocupação é mais imagem que liberdade. Um autoritário bem vestido ainda é um autoritário.
Mill parece levar esse princípio de que é autoritário e errado forçar um indivíduo “para seu próprio bem” ao ponto de desaprovar a ação coercitiva contra o suicídio. Por mais que possa parecer uma posição indefensável para alguns, talvez Mill simplesmente tivesse levado em conta que um suicida convicto tem a liberdade de se suicidar de facto, mesmo que se tente impedi-lo (lembre-se: ele lista várias outras ações para tentar evitar a tragédia, como tentar persuadi-lo). A minha avó paterna, por exemplo, tentou onze vezes até conseguir partir deste mundo. É triste, e ela sofria de um problema mental que a família tentou de todo jeito tratar, mas no fim das contas não era possível compeli-la a ficar. Não faz sentido defender como princípio algo que não é possível na prática. Daí, não faz sentido defender que existe um direito de coagir os indivíduos pelo seu próprio bem, nem mesmo no caso do suicídio.
Minha resposta completa
Repetir a posição do Mill contra a “coerção do bem”, no entanto, não é suficiente. Os defensores da coerção sanitária reafirmarão o princípio do dano, deixando de lado a questão do cinto de segurança ou outras proteções “para o próprio bem do indivíduo”, enfatizando os riscos que o indivíduo apresenta a outros, repetindo o ponto sobre dirigir na contramão ou dirigir bêbado. Os outros teriam o direito de se proteger desse risco através da coação contra o hesitante.
Ora, um problema, aqui, é que os defensores da coação sanitária não estão tocando em certos aspectos do risco que a covid representa. Voltemos à analogia do trânsito. Imaginemos o indivíduo mais prudente e perito na direção, que segue todas as leis de trânsito, adota todas as medidas e sugestões de segurança no volante. O risco que esse indivíduo apresenta a outros é zero? Não. Mesmo o mais prudente entre nós humanos é, como todos, ainda falível. O exercício da nossa liberdade de dirigir vem necessaria e inescapavelmente com um incremento de risco a outras pessoas que estiverem na rua conosco.
Liberdades genuínas vêm com riscos não só ao que desfruta delas, mas a outros. Chegamos ao ponto fulcral de discordância entre defensores da liberdade na questão da coerção sanitária: não é que devemos esperar zero risco como externalidade derivada de uma liberdade, mas que há um limiar desconhecido entre risco aceitável, intrínseco a uma liberdade, e perigo presente a outros que justifica a coerção, ou seja, o tal “exercício de poder” sobre o indivíduo. Os defensores da coerção sanitária não estão tocando neste assunto, querem que todos aceitem que o risco aceitável é zero, e isso não é razoável de se esperar de liberdade nenhuma, logo, não é uma defesa da liberdade.
Talvez eu esteja sendo injusto ao alegar que esperam que o risco seja zero. (Embora alguns certamente ajam como se esperassem isso.) Talvez nós só discordamos a respeito de onde está este limiar, de modo que eu penso que ele é superior ao risco apresentado pela covid, enquanto eles pensam que é igual ou inferior.
De qualquer forma, embora o limiar exato talvez esteja além das nossas capacidades analíticas, nós podemos inferir diretrizes para não nos perdemos por completo. Uma diretriz é a valência de intencionalidade do ato: ou seja, se a pessoa faz de propósito ou não. Nós punimos mais severamente quem mata de propósito (homicídio doloso) do que quem mata por acidente (homicídio culposo). É evidente que a maior parte, se não todos os casos de transmissão do vírus SARS-CoV-2 é algo que acontece de forma culposa. Então essa diretriz tende a ir contra a coerção sanitária, que não deixa de ser uma forma de punição para quem não quer seguir as ordens das autoridades. Uma pessoa que transmitiu o vírus pois se recusou a obedecer recomendações sanitárias pode ser idiota, imoral, irresponsável: ainda assim, não temos o direito de obrigá-la a fazer diferente. Como disse Mill, o autoritarismo não se justifica mesmo se a ação imposta é a correta. Pois a liberdade individual é um “correto” maior que este.
Outra diretriz é a taxa de mortalidade e sequelas do vírus, ou seja, aferir a magnitude exata do risco de permitir liberdade de recusa da vacina ou outras medidas sanitárias. Lembremos: a quantidade de pessoas que morrerão se houver liberdade de dirigir, mesmo se todos os motoristas forem prudentes, não é zero. E não será zero a quantidade de pessoas que morrerão como consequência direta de indivíduos serem livres para dizer não à vacina. A letalidade do vírus é alta? O caso geral é que não é, mas o caso específico pode não ser.
O mundo bolha
Falemos, então, do caso específico. Proponho um experimento mental. Imagine que Claudia nasceu com uma grave deficiência imunológica, especialmente sensível a bactérias comuns nas outras pessoas, e que ela morrerá se for infectada com as bactérias. Uma solução para Claudia continuar vivendo é fechar-se numa bolha de plástico, isolando todas as fontes de contaminação. Claudia quer viver, então ela toma essas precauções. Mas poderia ser diferente. Adquirindo poder político e influência, há uma alternativa: obrigar todas as pessoas do mundo a tomar antibióticos. Claudia estaria certa em fazer isso? No governo da imperadora Claudia, ela estaria moralmente correta se impusesse um passaporte do antibiótico para controlar quem pode circular, e talvez forçar mais diretamente o tratamento sobre os seus súditos? A imperadora Claudia, se fizesse isso, pareceria mais uma déspota esclarecida, que respeita os direitos e liberdades dos seus cidadãos, ou uma tirana autoritária que faz imposições injustas sobre esses direitos e liberdades?
Ora, os indivíduos humanos variam muito em suas particularidades a respeito de uma infinitude de riscos. A aposta do liberalismo é que o indivíduo é racional e, portanto, responsável por si, não só responsabilidade dos outros.
Aqui, abrimos uma outra dimensão do problema: quando Claudia era só um indivíduo tomando responsabilidade por si, ela arcaria com más consequências caso falhasse em tomar suas precauções. Já quando a imperadora Claudia resolveu forçar seus súditos a tomar antibióticos, os responsáveis por más consequências, como efeitos colaterais, não são esses indivíduos, mas ela, que os forçou. Há uma transferência da responsabilidade quando há uma transferência do poder de decisão. Porém, no mundo real, os tiranos que forçam coisas sobre os outros quase nunca se responsabilizam, ou são responsabilizados, pelas más consequências do que impuseram sobre suas vítimas. Governo nenhum se responsabilizará por efeito colateral de vacina (independente da raridade desse efeito), e o que os governos fizeram foi assinar acordos que isentam as fabricantes das vacinas de responsabilidade também. Como chamar toda hesitação de irracional, nessa situação?
Quem tirou a conclusão de que os riscos apresentados pela covid justificam a coerção sanitária ainda está no território do liberalismo, na análise lógica estrita. Não são falsos liberais. Sua posição é possível dentro dessa tradição de pensamento. Porém, diante da ignorância a respeito de qual é o limiar em que o risco aceitável se transforma em perigo presente, os favoráveis à coerção estão decidindo correr o risco de errar do lado da intervenção, em vez de correr o risco de errar do lado da liberdade. Não parece ser a posição de prudência dentro da defesa da liberdade.
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Há outras facetas do assunto que não toquei. Não falei a respeito do grau ao qual a vacina protege de transmissão. Não falei da aparente incoerência de vacinados entre forçar não-vacinados a se inocular enquanto afirmam que a vacina é eficaz em proteger a si mesmos de novas infecções. Não falei, também, se sequer faz sentido impor a vacina a pessoas como eu, com imunidade natural adquirida da recuperação. Essas questões, para o momento, eu deixo para o leitor pensar.