A ciência é politicamente neutra? Sim e não.
A primeira ambiguidade a ser resolvida é se por "ciência" estamos falando de comunidade científica e cientistas individuais, ou do processo de produção do conhecimento científico, dotado de seus métodos que nada mais são que uma extensão cara e crítica das marcas de confiabilidade de proposições do senso comum, herdada de séculos de investimento de trabalho mental (incluindo o dos filósofos).
Se estamos falando de cientistas em particular, claro que não são neutros, especialmente em assuntos em que afirmação de fatos não é moralmente irrelevante. Não que a orientação política altere os fatos: inventar fatos para acariciar posições políticas é fraude e é coisa condenada na comunidade científica. Mas orientações políticas dizem muito sobre investimentos de atenção e motivações. Podemos apostar que sociólogos que pesquisam experimentalmente diferenças de comportamento ético entre ricos e pobres tendem a ser de esquerda, por exemplo.
No entanto, se estamos nos referindo a teorias estabelecidas e amplamente amparadas evidencialmente e em seus poderes preditivo e explicativo, sim, ciência é politicamente neutra. A teoria da evolução não é de direita nem de esquerda. A hipótese do big bang não é anarquista nem estatista. Teorias científicas produzidas por séculos de investimento de trabalho mental de cientistas são, sim, neutras, até porque as diferentes perspectivas políticas de diferentes cientistas acabam se anulando. E além disso, um conteúdo produzido devido a certa motivação pode ser usado no contexto de outra motivação completamente diversa. Pode-se acusar Arquimedes de ser um apoiador da monarquia ao aceitar um trabalho para descobrir se a coroa do rei é de ouro puro. Alegar que o princípio de Arquimedes é intrinsecamente monarquista seria absurdo porque pode ser e já foi usado para realizar coisas com motivações republicanas.
Podemos pensar nas diferentes orientações políticas e ideológicas dos cientistas como vetores que muitas vezes apontam para sentidos opostos e podem se anular. Para que essa anulação de vetores ideológicos seja melhor, a comunidade científica precisa ser maximamente diversa. Hoje ela já é bastante diversa em nacionalidades e orientações políticas (lembro aqui de um amigo astrofísico que criticou um republicano numa lista de e-mails de astrofísica e teve de lidar com as reclamações dos astrofísicos republicanos). Ainda não é suficientemente diversa em gêneros, por exemplo - há muito a melhorar quanto à presença de mulheres. Nem suficientemente diversa em fontes de financiamento: não é bom para a pesquisa brasileira, por exemplo, que fora de São Paulo o investimento privado seja de pequeno a inexistente. Porque Estado e indústria têm interesses diferentes que podem levar a cabo pesquisas diferentes (por exemplo, um pode ser mais receptivo à pesquisa básica em vez de aplicada que outro), e se só uma fonte de financiamento participa, significa que estamos em primeiro lugar deixando um ponto cego no que pode ser pesquisado mas não atende aos interesses dessa fonte, e em segundo lugar aumentando a probabilidade desses interesses viciarem os resultados, por exemplo ocultando os resultados negativos e só publicando os positivos espúrios sobre alguma nova droga que a indústria queira vender.
Quem, apesar de tudo isso, ainda defende teorias sociológicas fortes da ciência, ou seja, de que o próprio conteúdo do conhecimento e teorias científicos são nada mais que arrotos ideológicos ou de determinadas orientações políticas, já desistiu do racionalismo há muito tempo, e portanto também de debater a questão. Quem acredita viver num mundo em que só existe queda de braço entre interesses particulares, e nenhuma pista de verdade em nenhum lugar (deixando de lado a incoerência que isso provoca), já perdeu o interesse em descobrir se a ciência de fato é neutra ou não, trocando isso por uma afirmação do interesse particular injustificado de que ela (não) seja.